



Voltar para casa e essa sensação de que nada mais ali te pertence, é estranho... Não é mais sete da manhã por aqui... agora é sempre cinco da manhã e todas essas cores entre a noite e o dia, outra coisa com a qual preciso me acostumar...
Não sei, mas sinto como se tivesse acabado de voltar do exílio, ou de um coma profundo, ou de uma longa e tenebrosa viagem e embora tudo aqui me pareça familiar, quase nada me tranqüiliza... Nem a música, nem os livros, nem o sofá e os cochilos de começo de manhã.
E para completar esse retrato que fica me fitando de dentro da gaveta, como se de fato pudesse me ver e me esfregar a verdade na cara... A gaveta nos separa, minha querida, nos separa, nos protege...
Novas canções alternam com os antigos sons. Estou pensando em trocar o sofá por uma rede no quintal e também esses livros, são muitos e estão empoeirados, precisam urgentemente achar seus donos, aqueles que vão lhe devotar por toda eternidade... Eu já aprendi que não preciso de tanta coisa assim para sobreviver, só o que consigo carregar... Me acostumei até com o silencio, mas não consigo lidar é com essa solidão...
E eu que pensei que havia superado, me vejo superada...

Hoje lembrei daquele momento na sala da casa dela onde eu ressaltei até com um pouco de desdém o mundo vazio em que ela vivia... Naquele momento se partiu o ultimo fio de consideração que havia entre nós onde ela me mostrou a grande grosseria que eu havia dito e como um tapa na cara disse que achava que eu era mais legal, bom talvez eu não fosse...
O que ela não sabe é que eu li no seu olhar algo como “eu sei exatamente onde estou metida”... Sim, eu sempre soube exatamente onde estava metida...
Engraçado que comecei esse pseudo-desabafo falando dela, mas acontece que tudo isso só me faz lembrar dela, de como de algum jeito, ela não queria que eu mergulhasse nisso, queria que minha inocência, meus sonhos e meu respeito pelas pessoas continuasse intactos e veja só no que deu... tudo jogado ao alto, espalhado pelos cantos do mundo... perdido no fundo de gavetas, empoeirados em estantes velhas...
E que contraditório, quanto mais eu me afastava dela, mais eu mergulhava nesse mundo, sentindo um quase prazer em me machucar, ou fazer doer... Sim, mas porque falar dela, depois de tanto tempo, tantos acontecimentos?
Porque para começar, devo confessar sem medo, sem culpa e até sem ressentimento algum que ela com toda a certeza foi a mulher que mais amei até hoje. E para recomeçar, devo jogar fora toda essa minha mágoa, porque não era para dar certo mesmo, porque tínhamos mundos e perspectivas diferentes e eu era uma completa tola.
Estou gargalhando de minha tolice, mas não com o desprezo de antes, com aversão e vergonha do que fui... Porque, meus caros, eu podia ser muito tola, mas sem falsa modéstia, eu era um grande ser humano... Digo era, porque muita coisa se perdeu nessa excursão, inevitavelmente muitos sonhos e ideais foram deixados de lados e alguns, tristemente, ficaram pelo caminho... Alguns valores foram soterrados, sentimentos estrangulados... E apesar de nunca ter sido muito de lamentações, essa é uma coisa pela qual se vale a pena lamentar... Sentimentos, grande e nobres sentimentos perdidos ante a ignorância, o desprezo e a indiferença...
Mas alguma coisa ainda há que se aproveitar, pois como diz o ditado, o que não mata engorda e ando meio seca de bons sentimentos, pensamentos positivos... Preciso me incomodar com alguma coisa... Preciso urgentemente que algo me toque, me desperte a ponto de querer tanto que cruze um rio inteiro por isso.
Preciso sentir minhas veias inflarem, minha pele incendiar, meu coração fazer pulsar as paredes do meu corpo... Cansei dessas sensações descartáveis de cinco segundos, que se compra com uma bebida quente, conversa fiada e sedução barata... Não digo que nunca mais sairei de casa querendo conhecer alguém que me dará prazer momentâneo e apenas isso, sem que precise que nos vejamos no dia seguinte para começarmos a teia de mentiras, o jogo de interesse e de perde e ganha que, às vezes, um relacionamento se torna... Talvez eu saia, mas uma overdose disso, nunca mais...
E o que eu levo de bom de tudo isso: seja transparente, não seja frágil. Seja sincero, não seja sacana. E não adianta alimentar essa imensa roda, se lá na outra extremidade estará você esperando para sofrer, ou sofrendo de solidão... Porque o sofrimento é inevitável, e como a morte temos que aprender a lidar com isso, para que não tome proporções maiores que as reais... Sofre-se por amor, mas sofre-se ainda mais amargamente pela falta dele
Mas como eu dizia, sinto que estou mais forte sem as tolices de criança, sem os extremos da adolescência e cortejando o equilíbrio assim, entre a razão e a insanidade, sem pressa em amadurecer, sem medo de crescer, apenas aceitando o que tiver de ser, onde quer que meus passos me levem...
Não acho que será fácil e Deus queira que não seja, senão, onde estará a graça em vencer os desafios? Mas assim, sem mágoas, ressentimentos, sem indiferença, sem essa sádica vontade de fazer sofrer, o caminho parece mais limpo, a bagagem mais leve e o dia bonito para recomeçar... Sem nuvens, azul... cor de esperança.

Enquanto fumava solitária, no apartamento escuro, com as janelas fechadas, o som desligado, ela lembrou, lembrou quando tudo começou. Do momento exato em que, como naqueles filmes fantásticos, o espírito deixa o corpo com uma expressão de pesar que diz: deixo-te aí, sozinha, vire-se com esse peso morto que é você.
E tudo começou, como diria Caio Fernando com uma epifania, exatamente como ele descreve em “pequenas epifanias”: dois ou três almoços, uns silêncios. Quando ela disse não diante de uma possibilidade, que mesmo sendo apenas uma possibilidade já apunhalava suas costelas, pesava sua cabeça e confundia seu humor.
Marcela havia cometido mais um erro, desses que se comete e depois se arrepende se achando a criatura mais burra e mais ridícula de todos os tempos. Mas então ela decidiu “não sentir”: um exercício suicida de colocar tudo para dentro, bem no fundo, tão escondido que nem ela mesma, quando quisesse procurar, tivesse certeza de onde exatamente estava e não achasse, não achasse nada que pudesse sentir.
E assim Marcela foi para rua e lá ela começou a olhar as pessoas como se não as visse, assim como se passa os olhos num livro que nunca vai ler. Ela deixou para trás a mania de querer ler as pessoas, como se elas sempre tivessem mais do que mostravam. Ela parou de querer escavar o que ninguém via, porque se ninguém via, era porque não existia mesmo.
E para isso Marcela nunca mais olhou nos olhos de ninguém. Falava com alguém sempre olhando para um ponto qualquer entre as sobrancelhas ou um ponto inexistente atrás do seu interlocutor e assim se protegia, porque os olhos, disso ela lembrava muito bem, os olhos sempre contavam segredos de forma tão escancarada mesmo para quem não quisesse sabê-los.
Depois Marcela parou de falar tudo que lhe vinha a cabeça, de seus sonhos, de suas fantasias muito bem construídas e coloridas, de si mesma. Ela agora vivia introspectiva pensando em teoria complexas sobre o comportamento humano, sobre os acontecimentos, sobre os livros que lia e era também sobre essas coisas que falava, quando falava, e por isso passou a ser incompreendida. Incompreendida, porque as pessoas gostam da sensação de dessecar suas vidas e colocar a mostra parte a parte, como numa aula de anatomia, para compararem umas com as outras e perceberem que está mais podre que quem.
Marcela também tinha que abandonar aquela sensação de perda e de vazio que de tão pesada lhe incomodava os ombros e não sendo pouco lhe deixava um gosto amargo na boca de sangue, café sem açúcar, cigarro barato e tudo isso junto. Mas essa era parte mais difícil, porque mesmo depois que ela guardasse seus sentimentos bem fundo naquela gaveta - que depois ela esquecia -, mesmo quando se negasse a ouvir os segredos que os olhos contam, quando guardava seus pensamentos para si e falava o que não pensava, aquele gosto ainda continuava lá, aquele gosto amargo de solidão, como se não houvesse mais ninguém no mundo.

Um blues qualquer tocava enquanto ela fumava um cigarro observando a rua lá embaixo. Do lado do seu prédio havia um poste de luz, diferente de todos os outros postes da rua, àquela luz era laranja, e todo mundo parecia tão suspeito quando iluminado por aquela luz. Ela morava num apartamento pequeno que vivia quase sempre escuro, se aproveitando daquela luz, ou da luz do sol que entrava sem pedir licença pelas três janelas.
O telefone tocou. Ela não abaixou o som e atendeu displicentemente, sem olhar no visor.
- Puta que pariu, Marcela! Suas mulheres não largam do meu pé. – disse uma voz exasperada do outro lado da linha.
- Quem mandou ter pena delas!? – perguntou a morena enquanto procurava uma cerveja na geladeira.
- Cara, você é muito ordinária, o que essas mulheres vêem em você!?
- É o sexo, minha querida, elas adoram o sexo. – ela respondeu com uma cara safada lembrando a noite passada, sem lembrar o rosto da mulher.
- Vadia. Porra, tive que sair do Lux escondida, porque tinha pelo menos umas três mulheres que queriam seu número, endereço, pontuação e não me deixavam nem beber de tantas perguntas que faziam.
- Mari, faz o seguinte: compra umas cervejas e vem beber aqui.
- Você não vai sair hoje? – perguntou surpresa.
- Nem um pouco a fim de ouvir ladainha de mulher ou fazer esforço para levá-las para a cama.
- E vai ficar sem sexo hoje!? – perguntou Mariana em tom irônico.
- Talvez. Quer dar pra mim hoje, Marizinha? – provocou Marcela.
- Vagabunda! Deus me livre dessa maldição.
- Vem logo, cervejas e cigarros. – falou Marcela desligando o telefone e atirando aparelho no sofá.
Bebeu mais um gole de sua cerveja e começou a imaginar a cena: Mari se esgueirando pelos cantos enquanto três loucas a caçavam por todo o bar. Mas era como ela havia dito: quem mandou ter pena delas!? Marcela era bem “prática”, como gostava dizer, só queria uma coisa de todas as mulheres que conhecia: sexo. Apenas sexo bom e sem compromisso algum. Se pudesse dispensar nome, dia seguinte e toda aquela ladainha de quero você só para mim, estava ótimo! Mas não, se cedia o nome tinha que sair fugida madrugada a fora para nem pensar em dia seguinte, mas quando se distraia e acordava com beijinho na nuca sabia que estava enrolada, levantava rápido, inventava uma desculpa qualquer, inventada que não tinha celular e tchau e benção! E quando encontrava a mulher por mais de uma vez e elas por acaso queriam lhe cobrar algo ela era curta e grossa:
- Foi só sexo, querida.
Já ganhou alguns tapas e meia dúzia de inimigas mortais, por isso ultimamente estava sendo mais cuidadosa, antes de começar a se desfazer das roupas, antes de aprofundar os beijos, antes de sentir sua pele rasgando pelas unhas vorazes, ela olhava bem nos olhos da mulher e dizia:
- Minha querida, é só sexo, ok!?
Dava certo a maioria das vezes, e se não desse, tão melhor para as duas, poupava trabalho, lágrimas e desassossego. Mas que mania os seres humanos tinham de se apegar uns aos outros. Era nisso que ainda pensava quando Mari chegou abrindo a porta, jogando os cigarros na mesinha de centro e indo direto para a cozinha colocar as cervejas na geladeira.
- Mari, porque diabos os seres humanos se apegam tanto uns aos outros?
- Não dá pra viver sozinha no mundo, Marcela. Precisamos uns dos outros. – dizia Mari enquanto voltava da cozinha, já com uma cerveja na mão.
- Sim, necessidades são satisfeitas com interesses. Tipo quando você está com fome, vai lá e come e pronto, acabou-se. – ela falou distraída com mais um suspeito que subia a rua.
- Pelo menos até você ter fome de novo. Mas pessoas não são como comida, você não pode comprar, guardar na geladeira ou guardar para comer amanhã.
- Uma pena, seria tudo tão mais simples. – falou enquanto dava um ultimo trago no seu cigarro, que aquela hora já não era mais nada que não um filtro já quase apagado.
- Onde você esconde seus sentimentos!? Eu não posso acreditar que você não tenha nem um pingo de remorso, você não era assim, acreditava em amor, vida a dois e essas coisas, como foi isso, acordou um dia e decidiu ser a mulher mais vagabunda que conseguia?
- Por muito tempo acreditei mesmo, não vou mentir, mas aquele trecho do conto do Caio Fernando não saiu da minha cabeça, eu já te falei dele, Sargento Garcia, ele era bem xucro e a filosofia dele era bem simples: pisa nos outros antes que te pisem. Minha querida, as pessoas pisaram muito em mim antes que eu decidisse pisar nelas.
- Então admite que pisa nas pessoas? – indagou uma Mari curiosa, acendendo um cigarro.
- Sim, não sou santa, sou miseravelmente sincera: eu quero das pessoas apenas o que eu quero, não o que elas estão dispostas a me dar. – ela falou com uma voz meio amargurada, jogando o filtro do cigarro longe.
Mariana tinha mais pena que raiva de Marcela. Elas se conheciam há muitos anos e aquela Marcela que agora se jogava no sofá ao seu lado, acendendo mais um cigarro e sem qualquer esperança ou expectativa em relação a nada nem de longe lembrava a amiga que conhecera na faculdade. O sinal mais claro de mudança se estampava no olhar. Marcela olhava para tudo e todos com imenso desdém, como se nada lhe fizesse a menor diferença. Mariana não se lembrava de um dia em específico que olhou em seus olhos e não enxergou outra coisa senão indiferença, mas aos poucos Marcela foi mudando. Não falava mais de sonhos, tratava as pessoas como os objetos de sua sala, aos quais não tinha qualquer apego e por isso se desfazia delas sem qualquer culpa. Perdeu alguns amigos pelo caminho, muitos não souberam se acostumar com essa nova personalidade, seu jeito ácido e “prático” de simplesmente não se apegar a nada nem a ninguém.
Marcela acreditava no amor e esperava encontrar alguém com quem pudesse dividir o resto de sua vida, acreditava. Hoje ela chegava a ter desprezo por quem pensassem assim e quando indagada a respeito de suas antigas crenças dizia apenas que a vida lhe mostrara uma nova perspectiva, uma deliciosa e frágil perspectiva baseada em sexo e relações superficiais.
- Eu não entendo como você mudou tanto. – falou Mariana mais para si mesma do que para a outra.
- Eu não mudei, o mundo me mudou. Todos esses amores que vocês tanto almejam, esses pelos quais vocês suspiram pelos cantos e pedem silenciosamente durante a madrugada, todos eles foram me sugando, me ferindo, me socando tanto, que um dia desses enquanto eu estava sangrando decidi que não queria mais apanhar, o que há de errado nisso!?
- Você fala como se amar fosse a pior maldição do mundo.
- Não, a pior com toda certeza é amar uma mulher!
- Não é possível que você não sinta mais nada.
- Sinto, claro que sinto, sinto tesão, tesão é um sentimento que dá e passa. Se quer saber se sinto remorso, culpa ou qualquer coisa nesse sentido, a resposta é não.
- Eu não consigo, não consigo fazer sexo sem me apegar, é tanta intimidade, um pouco de sincronia, sintonia... não consigo. – falou Mariana quase em agonia.
- Você pensa demais. Eu parei de pensar em muitas coisas, eu não penso no amanhã, por exemplo, detesto fazer planos e não crio mais expectativas em relação a nada. Descobri que sexo sem expectativas e dia seguinte é o melhor que pode haver. Você transa como se fosse a ultima foda de toda a sua vida, mas também como se fosse a primeira, tanto faz, você só transa, não há nada de complicado nisso.
- Você é feliz?
- Não busco felicidade, busco satisfação, e sim, estou satisfeita. – respondeu Marcela enquanto se levantava do sofá e ia até a cozinha buscar mais uma cerveja.
Felicidade, amor, sonhos, Marcela passou a odiar tanto essas palavras que tinha asco apenas por pensar nelas. Perdera a esperança no mundo, nas pessoas, paciência. Canalha, prepotente, arrogante, podiam chamar do que quisessem, estava apenas se protegendo, é a lei da sobrevivência: quem não mata, morre. Ela cansou de morrer todos os dias aos pouquinhos.
Marcela não voltou da cozinha, no meio do caminho preferiu a cama, dormir era sempre melhor que pensar.
Dois ou três almoços, uns silêncios.
Fragmentos disso que chamamos de "minha vida".
Caio Fernando Abreu
Há alguns dias, Deus — ou isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus —, enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor. Ou disso que chamamos, também com descuido e alguma pressa, de amor. E você sabe a que me refiro.
Antes que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer ou não querer — eu já estava lá dentro. E estar dentro daquilo era bom. Não me entenda mal — não aconteceu qualquer intimidade dessas que você certamente imagina. Na verdade, não aconteceu quase nada. Dois ou três almoços, uns silêncios. Fragmentos disso que chamamos, com aquele mesmo descuido, de "minha vida". Outros fragmentos, daquela "outra vida". De repente cruzadas ali, por puro mistério, sobre as toalhas brancas e os copos de vinho ou água, entre casquinhas de pão e cinzeiros cheios que os garçons rapidamente esvaziavam para que nos sentíssemos limpos. E nos sentíamos.
Por trás do que acontecia, eu redescobria magias sem susto algum. E de repente me sentia protegido, você sabe como: a vida toda, esses pedacinhos desconexos, se armavam de outro jeito, fazendo sentido. Nada de mal me aconteceria, tinha certeza, enquanto estivesse dentro do campo magnético daquela outra pessoa. Os olhos da outra pessoa me olhavam e me reconheciam como outra pessoa, e suavemente faziam perguntas, investigavam terrenos: ah você não come açúcar, ah você não bebe uísque, ah você é do signo de Libra. Traçando esboços, os dois. Tateando traços difusos, vagas promessas.
Nunca mais sair do centro daquele espaço para as duras ruas anônimas. Nunca mais sair daquele colo quente que é ter uma face para outra pessoa que também tem uma face para você, no meio da tralha desimportante e sem rosto de cada dia atravancando o coração. Mas no quarto, quinto dia, um trecho obsessivo do conto de Clarice Lispector "Tentação" na cabeça estonteada de encanto: "Mas ambos estavam comprometidos. Ele, com sua natureza aprisionada. Ela, com sua infância impossível". Cito de memória, não sei se correto. Fala no encontro de uma menina ruiva, sentada num degrau às três da tarde, com um cão basset também ruivo, que passa acorrentado. Ele pára. Os dois se olham. Cintilam, prometidos. A dona o puxa. Ele se vai. E nada acontece.
De mais a mais, eu não queria. Seria preciso forjar climas, insinuar convites, servir vinhos, acender velas, fazer caras. Para talvez ouvir não. A não ser que soprasse tanto vento que velejasse por si. Não velejou. Além disso, sem perceber, eu estava dentro da aprendizagem solitária do não-pedir. Só compreendi dias depois, quando um amigo me falou — descuidado, também — em pequenas epifanias. Miudinhas, quase pífias revelações de Deus feito jóias encravadas no dia-a-dia.
Era isso - aquela outra vida, inesperadamente misturada à minha, olhando a minha opaca vida com os mesmos olhos atentos com que eu a olhava: uma pequena epifania. Em seguida vieram o tempo, a distância, a poeira soprando. Mas eu trouxe de lá a memória de qualquer coisa macia que tem me alimentado nestes dias seguintes de ausência e fome. Sobretudo à noite, aos domingos. Recuperei um jeito de fumar olhando para trás das janelas, vendo o que ninguém veria.
Atrás das janelas, retomo esse momento de mel e sangue que Deus colocou tão rápido, e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto tempo incapazes de ver: uma possibilidade de amor. Curvo a cabeça, agradecido. E se estendo a mão, no meio da poeira de dentro de mim, posso tocar também em outra coisa. Essa pequena epifania. Com corpo e face. Que reponho devagar, traço a traço, quando estou só e tenho medo. Sorrio, então. E quase paro de sentir fome.
(Publicado no jornal "O Estado de S. Paulo", 22/04/1986)
“Boêmia, aqui me tens de regresso”. Hoje acordei pensando nisso, a propósito, acordei bem tarde, dei um beijo demorado na bochecha da minha mãe enquanto ela reclamava. Depois fui pra rua, minha mãe ainda reclamava: por eu não ajudar, por eu não trabalhar... E eu com cara mais limpa, enquanto segurava a porta disse: O que é isso mamãe? Já lhe disse que meu trabalho é intelectual, e que por isso não posso desviar minha atenção com nada mais!
Enquanto vou até o bar da esquina, onde meus amigos já me esperam paras as costumeiras partidas de sinuca, fico lembrando da minha cara de pau, hoje com mamãe, ontem com aquela menina... Sim, aquela que não me lembro o nome, amiga da menina que minha amiga ficou. Aquela mesma que ficou sozinha enquanto minha amiga se encarregou da amiga e eu pensei cá comigo: Mulher sozinha não! Puxei um assunto bem nada com nada, daqueles fim de festa e a minha amiga, como se tivéssemos combinado veio ficar se beijando na nossa frente, e a gente lá, olhando e eu brilhantemente falei:
- É feio ficar olhando!
E ela como se adivinhasse meus pensamentos disse:
- Fazer o que?
- Fazer igual! – disse já partindo para cima!
Na mosca! Mas esse é um jogo perdido, aqueles mesmo só para cumprir tabela. Mas fazer o que!? Fui par, não gosto das bolas pares, prefiro ímpar! Perdemos, pagamos: a próxima ficha, a próxima cerveja e não me pergunte de onde saiu o dinheiro. Há meia hora atrás ninguém tinha dinheiro, mas já estamos na quarta cerveja, na quinta ficha, arrumaram até algo para comer.
E o pessoal está tirando um som no violão e nós cantamos: as músicas, as histórias, as mulheres. Ninguém tem precisão de ir pra casa, na verdade vamos improvisar uma festinha na casa da Carol: dois galões de vinho, um litro de vodcka, cigarros, livros de poesia, violão. Ninguém está preocupado com conta pra pagar, ninguém está preocupado com a ressaca, com a mãe que vai ralhar, com ex-namorada, com salário atrasado... Queremos nos divertir! Amanhã é outro dia...
No dia seguinte subi a ladeira quase correndo. Estava decidida a entrar no café, pedir alguma coisa nem que fosse para levar, mas assim que avistei você, no meio de toda aquela algazarra do café percebi que aquela manhã seus olhos estavam mais tristes do que de costume. Você se movia rápido e anotava os pedidos com uma impaciência que tive pena da caneta e do papel. Dessa vez não reduzi o passo, tampouco o apressei, em vez disso parei. A sua tristeza me atraía de tal forma que eu não conseguia dar nem mais um passo. Eu nem sei por quanto tempo fiquei ali parada querendo absorver a tua tristeza, porque quando me dei conta seus olhos se encontraram com os meus me assustando de tal forma que dei dois passos para trás. Seu olhar era de puro desdém, não, era de indiferença, na verdade, nem sei, mas eu acho que qualquer coisa que estivesse sentindo você descarregou naquele olhar. Então, em vez de me sentir triste, me senti útil, afinal comigo você não teve que fingir sorriso, paciência ou complacência, você simplesmente me olhou com todo o sentimento que havia em você.Naquele dia cheguei atrasa e nem tomei café.

Depois que eu descobri onde ela trabalha mudei o caminho até o serviço. Agora passo por essa ladeira todos dias para lá no topo dar de cara com os seus olhos sempre atentos aos pedidos, mas com um brilho que não me engana, é tristeza. Subir uma ladeira e caminhar mais três quarteirões do que estava acostumada só para fitar seus olhos por dez segundos, às vezes 20, quando reduzo o passo, é meu mais novo passatempo.
Hoje você estava de cabelos soltos e isso me fez lembrar da primeira vez que a vi, caminhando apressada, cabelos ao vento. Você passou por mim e não me percebeu, e nem poderia, eu era mais uma pessoa a decorar a rua, a se por no seu caminho. Mas o cheiro do seu cabelo fez com que eu te percebesse, com que você ganhasse cor no meio daquela pintura da rotina, pessoas indo e vindo. Ah! O cheiro do teu cabelo deu uma cor tão forte aquele dia.
Teus cabelos soltos me fez lembrar aquele cheiro, não que eu me lembre dele, e isso é uma das coisas que muito lamento, mas lembro da impressão que ele me causou. E por essa impressão novamente tenho vontade de entrar lá, pedir um café e sentir esse cheiro toda vez que você for de lá para cá, com um pedido ou outro. Mas então eu me lembro que com a mudança de rota se eu não correr chego atrasada.
E nessa busca há quem não olhe para o lado. Há quem não perceba a magnitude de momentos simples como um banho de chuva, como poses malucas para uma infinidade de fotos loucas, como músicas toscas a beira mar. Tem gente que não nota que a pessoa do lado talvez queira conversar e tenha boas coisas a falar. Há quem não perceba, num olhar, uma infinidade de promessas, companheirismo, cumplicidade. Há quem não note, que em um abraço é possível ouvir o coração do outro e compartilhar, sua felicidade ou sua dor.
Quem espera por uma só pessoa, talvez não valorize todas as outras que estão ao seu lado. E assim, talvez deixe passar o amor mais sincero, verdadeiro e único: o amor de um amigo.
Preciso escrever. Mas não há nenhum tempo de qualidade, nem uma cadeira confortável, ou uma mente leve, entre todos esses papeis de letras fria e irreais. Entre essa negação de poesia, entre essa correria. Há horas que nem há prazer, pois pensar na mesquinhez do ser humano me tira a criatividade, me sufoca a imaginação.
Os movimentos são os mesmo, as preocupações também, nossas conversas a mesa do bar, que saudade dessas conversas! Saudade de ouvir meus amigos contarem os problemas e ter uma palavra de consolo para eles, mesmo que não fosse nenhuma.
Minhas costas doem. Meu tempo está curtíssimo. O que anda acontecendo no mundo, afinal? Meio por tabela eu ouço a música que agora toca nas rádios. Meio que por acaso tenho notícias dos amigos. Meio que por acaso vou de uma estrofe a outra, mas sem nunca completar o poema...