14 de dezembro de 2010

A menina do outro lado da rua





Há mais ou menos uma semana, eu voltei a me apaixonar pela menina do outro lado da rua. Digamos que daqui da varanda eu a observe, sempre atenta na janela, como se esperasse alguém. Já existe uma compreensão mútua entre nós, em cada gesto, olhar, canção ou poema que lhe escrevo.
Digo voltei a me apaixonar, porque em uma noite dessas de luar, quando ela estava na janela, de alguma forma inexplicável ela se iluminou para os meus olhos e tive vontade de correr até o outro lado da rua... Veja lá como são as coisas, todos os dias eu a via, a cumprimentava com um menear de cabeça, ela respondia com um gesto, um sorriso ou outro menear de cabeça de acordo com o seu humor, era como qualquer vizinha, como qualquer pessoa, mas veio a lua e tudo mudou...
Quando enfim decidi correr até lá, alguém chegou primeiro, devia ser quem ela tanto esperava porque seu sorriso foi a coisa mais linda que eu havia visto nos últimos tempos. Ela então entrou com esse alguém para dentro da casa e eu fiquei lá, no meio da rua, entre a minha casa e a dela, com aquele gosto amargo de perda...
Voltei para casa, mas ficar em casa me lembrava dela, lembrar dela me fazia olhar para janela, olhar a janela fechada me fazia lembrar de fracasso... Aproveitei a sensação de desconforto de estar em minha própria casa e fui viajar. Passei longos meses viajando, experimentando, pousando em uma cidade e outra, me entregando a corpos desconhecidos, mas a imagem daquela menina, na janela, nunca me saiu da cabeça.
Dentro de mim uma raiva crescente, não conseguia entender como uma simples menina, numa singela janela me impressionara tanto, não havia motivo nenhum para aquela insistência, não havia motivo nenhum para me doer tanto por perder algo que nunca fora meu... Mas ainda assim a imagem dela persistia, como um fantasma a me assombrar...
Um dia eu acordei na beira de uma estrada, as roupas amassadas e sujas, a cabeça doendo como se um trem houvesse passado por cima e um gosto terrível na boca. Eu estava no fundo do poço, longe de casa e nenhum amigo me reconheceria naquele estado lamentável em que me econtrava... Para me livrar de um fantasma, quase me transformei em um e, em vez de raiva, passei a sentir pena de mim, que como uma criança mimada não havia achado jeito de lidar com a perda...
Mesmo me dando conta disso tudo, ainda continuava na mesma, tentando achar o caminho de volta, num estado tão deplorável que ninguém conseguia ficar perto de mim por muito tempo... Nem o carteiro, meu amigo de longa data, parava mais para me cumprimentar... Mais tarde ele me contou que eu havia espezinhado seus sentimentos, desdenhado do amor e sentenciado sua desgraça... Nem eu olharia mais em minha própria cara, não posso culpá-lo.
Numa noite sem lua, que haviam se tornado minhas preferidas, enquanto meu olhar perdia-se no horizonte, uma mulher que mal lembro o nome, o cheiro ou gosto, falou-me num tom profundo:
- Deve haver algo mais por trás de tanta amargura, tanto desprezo, tanto desdém... deve haver um coração sufocado por ae...
Embora eu tenha gargalhado em sua cara, a expulsado do quarto como se expulsa um cachorro, aquelas palavras me incomodaram profundamente, tanto que no dia seguinte, sem qualquer bagagem, voltei para casa como havia saído, a pé e só.
Os primeiros dias em casa foram estranhos. Tudo me parecia distante, frio e pouco receptivo. Eu evitava a varanda, o sofá, o violão, os livros e tudo o mais que me remetesse... sentimentos. Com o tempo fui me reacostumando, retomando minhas coisas, reconquistando os amigos e deixando o sentimento entrar, mesmo que sorrateiro, pela porta da cozinha...
Ainda estou nesse processo, o Carteiro voltou a me visitar e fui ao encontro do Poeta, quando de lá voltei, abri as janelas, desenterrei os livros de poesia e fiz as pases com violão... E foi assim que em uma tarde, entre um Baudelaire e um Neruda ela surgiu na janela, ou eu a notei na janela, como se nunca houvesse saído de lá... Ela estava ainda mais linda do que me lembrava, mas mais inquieta... Eu a cumprimentei e ela me sorriu, um riso nervoso, mas continuou a olhar a rua e aquilo, em absoluto, me incomodou.
Depois disso, quase todas as tardes nos encontrávamos, ela de um lado da rua, em sua eterna espera, eu de outro, me acostumando com a vida, com as pessoas, com a perda... Ela sempre me tentava sorrir, mesmo quando não estivesse bem. Eu, por outro lado, sempre tentava parecer bem, mesmo não conseguindo sorrir... Assim nos apoiávamos, a meia distância, para que não sobrasse a solidão, nem de um lado, nem de outro...
E são nos dias de lua que quase não consigo controlar a vontade de atravessar a rua e pegá-la no colo, dizer que ela não precisa mais esperar porque eu posso tentar ser tudo o que ela precisa... Mas não, isso não dura muito, pois me dou conta de que ela espera por algo muito específico e eu já não espero mais nada e talvez por isso queira me agarrar a ela, como uma tábua de salvação... Na dúvida fico onde estou, cada dia mais acostumando-me comigo, com meus sonhos, minhas vontades... que na verdade, nunca saíram de mim, estavam apenas sufocados.


A menina do outro lado da rua, com carinho,

Poeta Desconexo.

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