Teus olhos de tempestade me devoram e me sugam para tua confusão. Teu cheiro insistente me embriaga a ponto de eu perder o rumo. Teu gosto de pêra madura me faz perder a noção das horas. Tuas pernas se confundem com as minhas a ponto de eu não saber mais para onde seguir. E quando tu sorri não sei precisar se meus pés continuam no chão.
X
A minha amante tem gosto de pêra madura e derrete na minha boca. A minha amante tem os olhos de tempestade e sempre que ela me olha, revira a minha alma. Minha amante tem um cheiro tão insistente como café e, por isso, é irresistível. A minha amante tem inquietações maiores que sua própria alma, mordazes. A minha amante tem voz de flautista, encanta qualquer um... Ah se minha amante me amasse além da hora do almoço!
XI
O meu coração despenca ribanceira abaixo
Já tem um cotovelo rasgado
Um joelho ralado
E a testa sangra incessantemente
Mas o coração, de tolo, continua caindo.
XII
Já não resta sequer o cheiro das flores
As cores parecem foscas, turvas
Esboços da primavera
As árvores começam a perder as folhas
E eu a respiração
XIII
Ela toca na minha garganta e pergunta:
- Isso é seu coração?
- Sim.
- E por que ele está aqui?
- É sempre assim quando você está por perto.
XIV
Cada rosto guarda uma história
Cada lágrima guarda uma dor
Cada amor, um pesadelo.
XV
Das palavras que você ouviu, apenas a mágoa do seu esquecimento
Os rabiscos de nossa história foram esquecidas no fundo do armário
Das perguntas sem resposta ecoam os pesares
Das palavras não ditas cresceram ervas daninhas
Que sufocaram nosso amor durante a noite.
FIM
Na primavera de 1964 uma moça rompeu com um rapaz porque ele jamais lhe daria o que ela precisava. Ele não lhe dava segurança, garantia de futuro, nem nada que se esperaria de um marido comprometido. Enquanto ela dizia que iria deixá-lo, que ele precisava ser mais insistente e correr atrás de seu futuro com a voracidade dos campeões, ele não lhe disse uma palavra.
Ela se irritava com o silêncio dele e logo lhe deu as costas para partir.
- Não se esqueça das flores. – ele disse enquanto empunhava um ramalhete de flores do campo.
Ela não lhe deu mais ouvidos e seguiu em frente: arrumou um marido que tinha um bom emprego, um tom de voz convincente, muitos amigos e futuro para lhe dar.
Muitas primaveras depois aquela mulher levava sua neta a floricultura para escolher as flores do seu casamento. Pensava em sua vida, já perto do fim, que foi adornada com um marido invejável que nunca lhe deu flores ou um beijo sequer que lhe despertasse a alma, mas que por outro lado lhe deu estabilidade e filhos lindos.
Ao entrarem na floricultura sua neta logo se distraiu com as rosas coloridas, ela por outro lado teve a atenção voltada para uma cena ao fundo: um senhor oferecia a uma senhora um ramalhete de flores que esta recebia com sorriso enorme e lágrimas nos olhos. Foi então que ela se lembrou daquele rapaz, que lhe oferecia flores e “nenhum futuro” e pensou que os príncipes encantados afinal, talvez, não empunhem espadas e tenham medo de seus próprios dragões.
Quando a realidade nos alcança tenho vontade de dizer:
- Te concentra nos meus olhos e não pensa em mais nada além de nós.
Eu adormeço antes de completar o pensamento.
VIII
A tua ausência deixa a primavera mais tímida.
Se os poetas fossem contar a nossa história diriam: E no início tudo era o caos, a ausência e a solidão. De um lado havia dor, de outro a escuridão, e Deus disse: faça-se a luz. Então os meus olhos encontraram os seus.
Se o ser humano não tivesse mania de querer consertar o mundo ele não estaria assim caindo aos pedaços e, talvez, o amor durasse uma centena de anos, como deveria ser. Mas essa essência humana que faz de nós a cobaia de nossas próprias experiências enche o mundo de parafernálias e o amor de subterfúgios. E no final da vida você já nem sabe se aquele embrulho na barriga é a presença do ser amado o fast food que não caiu bem.
Há qualquer coisa no seu sorriso que me tira de órbita. Mais tarde, anos luz daqui me acharão, quem sabe!? E talvez perguntarão: como diabos te perdeste de nós!? Foi um olhar, bastou um olhar!
V
Eu vinha nervosa pela rua ensaiando o que diria, aquela hora, quando ela abrisse a porta.
- Não consigo dormir. E isso já tem dois dias.
Ela me abraçaria sem palavras e me levaria para o sofá. Pousaria minha cabeça entre seus seios e logo eu ouviria as batidas compassadas do seu coração.
Chove em cima da minha cabeça, o pranto dela lava a minha tristeza.
Quando afinal cheguei à porta ela não se abriu.

Janelas. Elas me exercem um certo fascínio, as mulheres. Mas não muito altas, gosto delas a uma distância que não se perca os detalhes, as janelas. Ela se mexeu na cama, abriu os olhos vermelhos e ainda sonolentos, outra vez me surpreendendo com a cara na janela. Ela não precisou me censurar para que logo eu voltasse para seu lado. Eu gosto assim, bem perto, quase dentro dela, de forma a nos confundir e mal sabermos onde começa uma ou termina a outra.
Na cozinha também tem uma janela e dela só dá pra olhar o apartamento do outro lado. Um senhor branquela goma minuciosamente sua camisa branca, enquanto pensa nas viagens que não fez. Ele lembra que um dia teve 20 anos, que teve sonhos e os trocou por uma carreira que nunca decolou como pensava. No outro cômodo a mulher pensa que deveria ter um emprego, um jardim e também um cachorro. Ela ainda tem muitos sonhos, a maioria com cheiro de retrato guardado.
O aroma de café chega até a sala.
- Estou com saudade! – ela diz do sofá.
- De mim? – eu pergunto para ter certeza, terminando de preparar nosso café.
- Sim. – ela responde simplesmente.
A surpreendo com os olhos na parede e com o espírito muito além disso e, por breves minuto, eu a perco para as suas dolorosas lembranças, que ainda não cicatrizaram. Quando ela volta ofereço a xícara de café. Ela me vê como se eu tivesse acabado de chegar, com olhos de saudade.
Na sala tem uma janela ainda maior e dela eu consigo ver o céu e penso na vida pra levar, nas coisas por fazer e na minha falta de vontade de mover um músculo sequer dali. O cheiro dela atinge as minhas células aumentando ainda mais minha letargia. Quando o corpo dela toca o meu, muito de leve, quase como um sopro, eu já esqueci da janela, do que está para além dela e de para onde eu iria aquela tarde. Porque quando ela me olha com aqueles olhos de tempestade eu me perco neles sem saber se ainda há uma janela por onde escapar.

O que a chuva traz, a chuva leva.
Chovia muito, mas dentro de mim era como se o céu estivesse azul e o sol com aquele brilho de sete da manhã. Eu me abrigava debaixo de um daqueles toldos de uma loja qualquer quando ela se pôs ao meu lado, ainda ofegante pela corrida que certamente fizera até ali. Enquanto ela se ocupava em verificar o estrago que água fizera a suas roupas e ao seu cabelo, eu me embevecia silenciosamente com a sua presença sentindo um quase prazer pelo alarde que meu corpo fazia só por tê-la por perto. Segundos antes de ela virar em minha direção, e me reconhecer, seu cheiro me invadiu como cheiro de café ao amanhecer, como que me convidado a tragá-la, e foi inevitável que o sorriso no meu rosto se alargasse.
- Não acredito que te encontro logo aqui! - ela exclamou surpresa.
- A chuva te trouxe pra mim. – fiz uma metáfora que prontamente ela ignorou.
- Sumistes. Não tem mais tempo para uma amiga? - rebateu queixosa.
- Pra você? Sempre. - falei com convicção.
- Percebo, toda vez que tento falar contigo. – ela e a costumeira ironia.
- Oh, minha querida, é o destino que teima em nos separar. – falei quase como um suspiro.
Ela nada disse, mas fez o já conhecido gesto de levantar uma das sobrancelhas, me dizendo silenciosamente que das coisas impossíveis ela já era escolada, mas que aquilo era desculpa pseudo-poética para o meu distanciamento.
- Eu sei, é saudade. – eu continuava a falar como um personagem de um livro não escrito. – Mas é como diz aquela música “Quero que saibas, que me lembro. Queria até que pudesses me ver. És parte ainda do que me faz forte, e pra ser honesto só um pouquinho infeliz.”
Por um instante o ar severo que até agora ela sustentava se desfez, ela queria sorrir, aquele sorriso amargo e triste, do qual me lembrava bem, que queria dizer “nunca poderia te dar o que queres”, mas como se tivesse acabado de lembrar do porque de nosso distanciamento, seu olhar se aprofundou sobre objeto qualquer atrás de mim e eu já sabia que tinha acabado de perdê-la, de novo. Mesmo assim, com aquela calma que me fazia ter a sensação de estar levitando e que nada, nada mesmo, pudesse me atingir, continuei:
- Ou como diz aquela outra: tenho um mundo inteiro pra salvar e pensar em você é kriptonita.
- É, Ludov. – ela balbuciou.
Pensei que aquele seria o momento de dizer o quanto a amava, mas que esse sentimento vinha me machucando a ponto de eu ter que morrer um pouquinho mais, a cada dia, só para estar do seu lado, e que antes que não restasse mais nada eu precisava juntar os meus pedaços e tentar me (re) compor, mas falar aquilo só nos machucaria ainda mais porque eu jamais saberia lhe explicar porque me rasguei no meio para de alguma forma “tê-la”, quando ela fez de tudo para evitar justamente isso.
- É melhor assim! – pensei alto. Era uma confissão que fazia a mim mesma, querendo que ela escutasse.
- O que? – ela perguntou curiosa.
- Longe.
Outra vez a expressão mudou, era como se ela acabasse de ser atingida por um iceberg. Notei que entrara num terreno perigoso, já sabendo onde ele iria dar, e logo desisti de verbalizar sentimentos e resolvi que simplesmente perguntaria sobre ela, mas antes que eu pudesse proferir o clichê “mas e você, como vai?”, ela me disse com o ar distante:
- Esquece, te cuida ai. Um dia te chamo para fumar um cigarro.
E correu. Dessa vez em direção a chuva e, quanto mais ela sumia, sendo carregada pela água, mais a calma se alojava em mim. Pensei comigo “tem certas coisas que era melhor nunca sabermos”. O cheiro dela ainda continuava lá e aquilo aqueceu meu coração, como sempre acontecia, e eu pensei de novo: “tem certas coisas que não se pode viver sem sentir”. Acendi um cigarro e sorri. O que a chuva traz, a chuva leva.

