14 de setembro de 2010 0 comentários

MARCELA : Ato 1




Enquanto fumava solitária, no apartamento escuro, com as janelas fechadas, o som desligado, ela lembrou, lembrou quando tudo começou. Do momento exato em que, como naqueles filmes fantásticos, o espírito deixa o corpo com uma expressão de pesar que diz: deixo-te aí, sozinha, vire-se com esse peso morto que é você.

E tudo começou, como diria Caio Fernando com uma epifania, exatamente como ele descreve em “pequenas epifanias”: dois ou três almoços, uns silêncios. Quando ela disse não diante de uma possibilidade, que mesmo sendo apenas uma possibilidade já apunhalava suas costelas, pesava sua cabeça e confundia seu humor.

Marcela havia cometido mais um erro, desses que se comete e depois se arrepende se achando a criatura mais burra e mais ridícula de todos os tempos. Mas então ela decidiu “não sentir”: um exercício suicida de colocar tudo para dentro, bem no fundo, tão escondido que nem ela mesma, quando quisesse procurar, tivesse certeza de onde exatamente estava e não achasse, não achasse nada que pudesse sentir.

E assim Marcela foi para rua e lá ela começou a olhar as pessoas como se não as visse, assim como se passa os olhos num livro que nunca vai ler. Ela deixou para trás a mania de querer ler as pessoas, como se elas sempre tivessem mais do que mostravam. Ela parou de querer escavar o que ninguém via, porque se ninguém via, era porque não existia mesmo.

E para isso Marcela nunca mais olhou nos olhos de ninguém. Falava com alguém sempre olhando para um ponto qualquer entre as sobrancelhas ou um ponto inexistente atrás do seu interlocutor e assim se protegia, porque os olhos, disso ela lembrava muito bem, os olhos sempre contavam segredos de forma tão escancarada mesmo para quem não quisesse sabê-los.

Depois Marcela parou de falar tudo que lhe vinha a cabeça, de seus sonhos, de suas fantasias muito bem construídas e coloridas, de si mesma. Ela agora vivia introspectiva pensando em teoria complexas sobre o comportamento humano, sobre os acontecimentos, sobre os livros que lia e era também sobre essas coisas que falava, quando falava, e por isso passou a ser incompreendida. Incompreendida, porque as pessoas gostam da sensação de dessecar suas vidas e colocar a mostra parte a parte, como numa aula de anatomia, para compararem umas com as outras e perceberem que está mais podre que quem.

Marcela também tinha que abandonar aquela sensação de perda e de vazio que de tão pesada lhe incomodava os ombros e não sendo pouco lhe deixava um gosto amargo na boca de sangue, café sem açúcar, cigarro barato e tudo isso junto. Mas essa era parte mais difícil, porque mesmo depois que ela guardasse seus sentimentos bem fundo naquela gaveta - que depois ela esquecia -, mesmo quando se negasse a ouvir os segredos que os olhos contam, quando guardava seus pensamentos para si e falava o que não pensava, aquele gosto ainda continuava lá, aquele gosto amargo de solidão, como se não houvesse mais ninguém no mundo.

 
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