28 de agosto de 2010 2 comentários

MARCELA



Um blues qualquer tocava enquanto ela fumava um cigarro observando a rua lá embaixo. Do lado do seu prédio havia um poste de luz, diferente de todos os outros postes da rua, àquela luz era laranja, e todo mundo parecia tão suspeito quando iluminado por aquela luz. Ela morava num apartamento pequeno que vivia quase sempre escuro, se aproveitando daquela luz, ou da luz do sol que entrava sem pedir licença pelas três janelas.

O telefone tocou. Ela não abaixou o som e atendeu displicentemente, sem olhar no visor.

- Puta que pariu, Marcela! Suas mulheres não largam do meu pé. – disse uma voz exasperada do outro lado da linha.

- Quem mandou ter pena delas!? – perguntou a morena enquanto procurava uma cerveja na geladeira.

- Cara, você é muito ordinária, o que essas mulheres vêem em você!?

- É o sexo, minha querida, elas adoram o sexo. – ela respondeu com uma cara safada lembrando a noite passada, sem lembrar o rosto da mulher.

- Vadia. Porra, tive que sair do Lux escondida, porque tinha pelo menos umas três mulheres que queriam seu número, endereço, pontuação e não me deixavam nem beber de tantas perguntas que faziam.

- Mari, faz o seguinte: compra umas cervejas e vem beber aqui.

- Você não vai sair hoje? – perguntou surpresa.

- Nem um pouco a fim de ouvir ladainha de mulher ou fazer esforço para levá-las para a cama.

- E vai ficar sem sexo hoje!? – perguntou Mariana em tom irônico.

- Talvez. Quer dar pra mim hoje, Marizinha? – provocou Marcela.

- Vagabunda! Deus me livre dessa maldição.

- Vem logo, cervejas e cigarros. – falou Marcela desligando o telefone e atirando aparelho no sofá.

Bebeu mais um gole de sua cerveja e começou a imaginar a cena: Mari se esgueirando pelos cantos enquanto três loucas a caçavam por todo o bar. Mas era como ela havia dito: quem mandou ter pena delas!? Marcela era bem “prática”, como gostava dizer, só queria uma coisa de todas as mulheres que conhecia: sexo. Apenas sexo bom e sem compromisso algum. Se pudesse dispensar nome, dia seguinte e toda aquela ladainha de quero você só para mim, estava ótimo! Mas não, se cedia o nome tinha que sair fugida madrugada a fora para nem pensar em dia seguinte, mas quando se distraia e acordava com beijinho na nuca sabia que estava enrolada, levantava rápido, inventava uma desculpa qualquer, inventada que não tinha celular e tchau e benção! E quando encontrava a mulher por mais de uma vez e elas por acaso queriam lhe cobrar algo ela era curta e grossa:

- Foi só sexo, querida.

Já ganhou alguns tapas e meia dúzia de inimigas mortais, por isso ultimamente estava sendo mais cuidadosa, antes de começar a se desfazer das roupas, antes de aprofundar os beijos, antes de sentir sua pele rasgando pelas unhas vorazes, ela olhava bem nos olhos da mulher e dizia:

- Minha querida, é só sexo, ok!?

Dava certo a maioria das vezes, e se não desse, tão melhor para as duas, poupava trabalho, lágrimas e desassossego. Mas que mania os seres humanos tinham de se apegar uns aos outros. Era nisso que ainda pensava quando Mari chegou abrindo a porta, jogando os cigarros na mesinha de centro e indo direto para a cozinha colocar as cervejas na geladeira.

- Mari, porque diabos os seres humanos se apegam tanto uns aos outros?

- Não dá pra viver sozinha no mundo, Marcela. Precisamos uns dos outros. – dizia Mari enquanto voltava da cozinha, já com uma cerveja na mão.

- Sim, necessidades são satisfeitas com interesses. Tipo quando você está com fome, vai lá e come e pronto, acabou-se. – ela falou distraída com mais um suspeito que subia a rua.

- Pelo menos até você ter fome de novo. Mas pessoas não são como comida, você não pode comprar, guardar na geladeira ou guardar para comer amanhã.

- Uma pena, seria tudo tão mais simples. – falou enquanto dava um ultimo trago no seu cigarro, que aquela hora já não era mais nada que não um filtro já quase apagado.

- Onde você esconde seus sentimentos!? Eu não posso acreditar que você não tenha nem um pingo de remorso, você não era assim, acreditava em amor, vida a dois e essas coisas, como foi isso, acordou um dia e decidiu ser a mulher mais vagabunda que conseguia?

- Por muito tempo acreditei mesmo, não vou mentir, mas aquele trecho do conto do Caio Fernando não saiu da minha cabeça, eu já te falei dele, Sargento Garcia, ele era bem xucro e a filosofia dele era bem simples: pisa nos outros antes que te pisem. Minha querida, as pessoas pisaram muito em mim antes que eu decidisse pisar nelas.

- Então admite que pisa nas pessoas? – indagou uma Mari curiosa, acendendo um cigarro.

- Sim, não sou santa, sou miseravelmente sincera: eu quero das pessoas apenas o que eu quero, não o que elas estão dispostas a me dar. – ela falou com uma voz meio amargurada, jogando o filtro do cigarro longe.

Mariana tinha mais pena que raiva de Marcela. Elas se conheciam há muitos anos e aquela Marcela que agora se jogava no sofá ao seu lado, acendendo mais um cigarro e sem qualquer esperança ou expectativa em relação a nada nem de longe lembrava a amiga que conhecera na faculdade. O sinal mais claro de mudança se estampava no olhar. Marcela olhava para tudo e todos com imenso desdém, como se nada lhe fizesse a menor diferença. Mariana não se lembrava de um dia em específico que olhou em seus olhos e não enxergou outra coisa senão indiferença, mas aos poucos Marcela foi mudando. Não falava mais de sonhos, tratava as pessoas como os objetos de sua sala, aos quais não tinha qualquer apego e por isso se desfazia delas sem qualquer culpa. Perdeu alguns amigos pelo caminho, muitos não souberam se acostumar com essa nova personalidade, seu jeito ácido e “prático” de simplesmente não se apegar a nada nem a ninguém.

Marcela acreditava no amor e esperava encontrar alguém com quem pudesse dividir o resto de sua vida, acreditava. Hoje ela chegava a ter desprezo por quem pensassem assim e quando indagada a respeito de suas antigas crenças dizia apenas que a vida lhe mostrara uma nova perspectiva, uma deliciosa e frágil perspectiva baseada em sexo e relações superficiais.

- Eu não entendo como você mudou tanto. – falou Mariana mais para si mesma do que para a outra.

- Eu não mudei, o mundo me mudou. Todos esses amores que vocês tanto almejam, esses pelos quais vocês suspiram pelos cantos e pedem silenciosamente durante a madrugada, todos eles foram me sugando, me ferindo, me socando tanto, que um dia desses enquanto eu estava sangrando decidi que não queria mais apanhar, o que há de errado nisso!?

- Você fala como se amar fosse a pior maldição do mundo.

- Não, a pior com toda certeza é amar uma mulher!

- Não é possível que você não sinta mais nada.

- Sinto, claro que sinto, sinto tesão, tesão é um sentimento que dá e passa. Se quer saber se sinto remorso, culpa ou qualquer coisa nesse sentido, a resposta é não.

- Eu não consigo, não consigo fazer sexo sem me apegar, é tanta intimidade, um pouco de sincronia, sintonia... não consigo. – falou Mariana quase em agonia.

- Você pensa demais. Eu parei de pensar em muitas coisas, eu não penso no amanhã, por exemplo, detesto fazer planos e não crio mais expectativas em relação a nada. Descobri que sexo sem expectativas e dia seguinte é o melhor que pode haver. Você transa como se fosse a ultima foda de toda a sua vida, mas também como se fosse a primeira, tanto faz, você só transa, não há nada de complicado nisso.

- Você é feliz?

- Não busco felicidade, busco satisfação, e sim, estou satisfeita. – respondeu Marcela enquanto se levantava do sofá e ia até a cozinha buscar mais uma cerveja.

Felicidade, amor, sonhos, Marcela passou a odiar tanto essas palavras que tinha asco apenas por pensar nelas. Perdera a esperança no mundo, nas pessoas, paciência. Canalha, prepotente, arrogante, podiam chamar do que quisessem, estava apenas se protegendo, é a lei da sobrevivência: quem não mata, morre. Ela cansou de morrer todos os dias aos pouquinhos.

Marcela não voltou da cozinha, no meio do caminho preferiu a cama, dormir era sempre melhor que pensar.

20 de agosto de 2010 0 comentários

CAIO FERNANDO ABREU


Dois ou três almoços, uns silêncios.
Fragmentos disso que chamamos de "minha vida".

Caio Fernando Abreu



Há alguns dias, Deus — ou isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus —, enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor. Ou disso que chamamos, também com descuido e alguma pressa, de amor. E você sabe a que me refiro.

Antes que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer ou não querer — eu já estava lá dentro. E estar dentro daquilo era bom. Não me entenda mal — não aconteceu qualquer intimidade dessas que você certamente imagina. Na verdade, não aconteceu quase nada. Dois ou três almoços, uns silêncios. Fragmentos disso que chamamos, com aquele mesmo descuido, de "minha vida". Outros fragmentos, daquela "outra vida". De repente cruzadas ali, por puro mistério, sobre as toalhas brancas e os copos de vinho ou água, entre casquinhas de pão e cinzeiros cheios que os garçons rapidamente esvaziavam para que nos sentíssemos limpos. E nos sentíamos.

Por trás do que acontecia, eu redescobria magias sem susto algum. E de repente me sentia protegido, você sabe como: a vida toda, esses pedacinhos desconexos, se armavam de outro jeito, fazendo sentido. Nada de mal me aconteceria, tinha certeza, enquanto estivesse dentro do campo magnético daquela outra pessoa. Os olhos da outra pessoa me olhavam e me reconheciam como outra pessoa, e suavemente faziam perguntas, investigavam terrenos: ah você não come açúcar, ah você não bebe uísque, ah você é do signo de Libra. Traçando esboços, os dois. Tateando traços difusos, vagas promessas.

Nunca mais sair do centro daquele espaço para as duras ruas anônimas. Nunca mais sair daquele colo quente que é ter uma face para outra pessoa que também tem uma face para você, no meio da tralha desimportante e sem rosto de cada dia atravancando o coração. Mas no quarto, quinto dia, um trecho obsessivo do conto de Clarice Lispector "Tentação" na cabeça estonteada de encanto: "Mas ambos estavam comprometidos. Ele, com sua natureza aprisionada. Ela, com sua infância impossível". Cito de memória, não sei se correto. Fala no encontro de uma menina ruiva, sentada num degrau às três da tarde, com um cão basset também ruivo, que passa acorrentado. Ele pára. Os dois se olham. Cintilam, prometidos. A dona o puxa. Ele se vai. E nada acontece.

De mais a mais, eu não queria. Seria preciso forjar climas, insinuar convites, servir vinhos, acender velas, fazer caras. Para talvez ouvir não. A não ser que soprasse tanto vento que velejasse por si. Não velejou. Além disso, sem perceber, eu estava dentro da aprendizagem solitária do não-pedir. Só compreendi dias depois, quando um amigo me falou — descuidado, também — em pequenas epifanias. Miudinhas, quase pífias revelações de Deus feito jóias encravadas no dia-a-dia.

Era isso - aquela outra vida, inesperadamente misturada à minha, olhando a minha opaca vida com os mesmos olhos atentos com que eu a olhava: uma pequena epifania. Em seguida vieram o tempo, a distância, a poeira soprando. Mas eu trouxe de lá a memória de qualquer coisa macia que tem me alimentado nestes dias seguintes de ausência e fome. Sobretudo à noite, aos domingos. Recuperei um jeito de fumar olhando para trás das janelas, vendo o que ninguém veria.

Atrás das janelas, retomo esse momento de mel e sangue que Deus colocou tão rápido, e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto tempo incapazes de ver: uma possibilidade de amor. Curvo a cabeça, agradecido. E se estendo a mão, no meio da poeira de dentro de mim, posso tocar também em outra coisa. Essa pequena epifania. Com corpo e face. Que reponho devagar, traço a traço, quando estou só e tenho medo. Sorrio, então. E quase paro de sentir fome.

(Publicado no jornal "O Estado de S. Paulo", 22/04/1986)

1 de agosto de 2010 2 comentários

Boêmia

Texto antigo, de um tempo bom...

“Boêmia, aqui me tens de regresso”. Hoje acordei pensando nisso, a propósito, acordei bem tarde, dei um beijo demorado na bochecha da minha mãe enquanto ela reclamava. Depois fui pra rua, minha mãe ainda reclamava: por eu não ajudar, por eu não trabalhar... E eu com cara mais limpa, enquanto segurava a porta disse: O que é isso mamãe? Já lhe disse que meu trabalho é intelectual, e que por isso não posso desviar minha atenção com nada mais!

Enquanto vou até o bar da esquina, onde meus amigos já me esperam paras as costumeiras partidas de sinuca, fico lembrando da minha cara de pau, hoje com mamãe, ontem com aquela menina... Sim, aquela que não me lembro o nome, amiga da menina que minha amiga ficou. Aquela mesma que ficou sozinha enquanto minha amiga se encarregou da amiga e eu pensei cá comigo: Mulher sozinha não! Puxei um assunto bem nada com nada, daqueles fim de festa e a minha amiga, como se tivéssemos combinado veio ficar se beijando na nossa frente, e a gente lá, olhando e eu brilhantemente falei:

- É feio ficar olhando!

E ela como se adivinhasse meus pensamentos disse:

- Fazer o que?

- Fazer igual! – disse já partindo para cima!

Na mosca! Mas esse é um jogo perdido, aqueles mesmo só para cumprir tabela. Mas fazer o que!? Fui par, não gosto das bolas pares, prefiro ímpar! Perdemos, pagamos: a próxima ficha, a próxima cerveja e não me pergunte de onde saiu o dinheiro. Há meia hora atrás ninguém tinha dinheiro, mas já estamos na quarta cerveja, na quinta ficha, arrumaram até algo para comer.

E o pessoal está tirando um som no violão e nós cantamos: as músicas, as histórias, as mulheres. Ninguém tem precisão de ir pra casa, na verdade vamos improvisar uma festinha na casa da Carol: dois galões de vinho, um litro de vodcka, cigarros, livros de poesia, violão. Ninguém está preocupado com conta pra pagar, ninguém está preocupado com a ressaca, com a mãe que vai ralhar, com ex-namorada, com salário atrasado... Queremos nos divertir! Amanhã é outro dia...

 
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