27 de dezembro de 2010 1 comentários

Porque de pilantra e de poeta, temos a dose certa.

Ao Poeta Desconexo.







Sou do tipo sem vergonha que não disfarça para olhar o que é bonito. Aquele que diz que vai na esquina comprar cigarros e volta três dias depois sem a carteira de cigarro, com um sorriso sacana e uma história mirabolante de seqüestro relâmpago. Sou descuidado, a ponto de deixar cheiro de mulher pela roupa, pelos cabelos e sequer me importar se você vai sentir. Sou exigente, porque quero tudo limpo, tudo pronto e você cheirosa pra mim. Sou preguiçoso a ponto de me esparramar no sofá ao meio dia e por lá ficar até acordar e sair outra vez. Um bagunceiro irremediável que joga as roupas pela casa, esperando que você as ache, que espalha os livros pelos móveis, sem deixar que você os tire do lugar, porque só assim sei exatamente onde estão. Sou o pilantra que te deixa preocupada noites a fio, que te deixa dormir sozinha numa madrugada fria.
Mas sou eu também que chego te abraçando forte, já colocando uma das pernas entre as suas, sussurando o quanto és linda e o quanto te quero inteira, bem agora, bem ali. Sou também atencioso a ponto de te acalentar por toda a madrugada, porque você teve um sonho ruim. Sou sensível a ponto de perceber, que aquele seu olhar perdido e suas meias palavras querem dizer insegurança... E é por isso que sou aquele que te diz, com todos os eu´s, os te e os amo, com palavras, com gestos, com olhar com silêncio, o quanto te amo! Ah eu amo! Amo a sua calma, o seu carinho, o seu cuidado, a sua entrega, o seu olhar profundo, a maneira com que morde, me devora e no segundo seguinte pede para ser tragada inteira e de uma vez só, como se de fato pudesse ir assim, numa outra dimensão e depois voltar.
Sou, portanto, o poeta, que te ama, te deseja, te devora para te transformar em palavra sussurrada em meio ao infinito, para que subsista por toda a eternidade eu, tu, nós...

Porque de plilantra e de poeta, tenho a dose certa.

(Ah se existe eu, se existisse tu e se o amor fosse algo mais que uma ilusão...)


14 de dezembro de 2010 0 comentários

A menina do outro lado da rua





Há mais ou menos uma semana, eu voltei a me apaixonar pela menina do outro lado da rua. Digamos que daqui da varanda eu a observe, sempre atenta na janela, como se esperasse alguém. Já existe uma compreensão mútua entre nós, em cada gesto, olhar, canção ou poema que lhe escrevo.
Digo voltei a me apaixonar, porque em uma noite dessas de luar, quando ela estava na janela, de alguma forma inexplicável ela se iluminou para os meus olhos e tive vontade de correr até o outro lado da rua... Veja lá como são as coisas, todos os dias eu a via, a cumprimentava com um menear de cabeça, ela respondia com um gesto, um sorriso ou outro menear de cabeça de acordo com o seu humor, era como qualquer vizinha, como qualquer pessoa, mas veio a lua e tudo mudou...
Quando enfim decidi correr até lá, alguém chegou primeiro, devia ser quem ela tanto esperava porque seu sorriso foi a coisa mais linda que eu havia visto nos últimos tempos. Ela então entrou com esse alguém para dentro da casa e eu fiquei lá, no meio da rua, entre a minha casa e a dela, com aquele gosto amargo de perda...
Voltei para casa, mas ficar em casa me lembrava dela, lembrar dela me fazia olhar para janela, olhar a janela fechada me fazia lembrar de fracasso... Aproveitei a sensação de desconforto de estar em minha própria casa e fui viajar. Passei longos meses viajando, experimentando, pousando em uma cidade e outra, me entregando a corpos desconhecidos, mas a imagem daquela menina, na janela, nunca me saiu da cabeça.
Dentro de mim uma raiva crescente, não conseguia entender como uma simples menina, numa singela janela me impressionara tanto, não havia motivo nenhum para aquela insistência, não havia motivo nenhum para me doer tanto por perder algo que nunca fora meu... Mas ainda assim a imagem dela persistia, como um fantasma a me assombrar...
Um dia eu acordei na beira de uma estrada, as roupas amassadas e sujas, a cabeça doendo como se um trem houvesse passado por cima e um gosto terrível na boca. Eu estava no fundo do poço, longe de casa e nenhum amigo me reconheceria naquele estado lamentável em que me econtrava... Para me livrar de um fantasma, quase me transformei em um e, em vez de raiva, passei a sentir pena de mim, que como uma criança mimada não havia achado jeito de lidar com a perda...
Mesmo me dando conta disso tudo, ainda continuava na mesma, tentando achar o caminho de volta, num estado tão deplorável que ninguém conseguia ficar perto de mim por muito tempo... Nem o carteiro, meu amigo de longa data, parava mais para me cumprimentar... Mais tarde ele me contou que eu havia espezinhado seus sentimentos, desdenhado do amor e sentenciado sua desgraça... Nem eu olharia mais em minha própria cara, não posso culpá-lo.
Numa noite sem lua, que haviam se tornado minhas preferidas, enquanto meu olhar perdia-se no horizonte, uma mulher que mal lembro o nome, o cheiro ou gosto, falou-me num tom profundo:
- Deve haver algo mais por trás de tanta amargura, tanto desprezo, tanto desdém... deve haver um coração sufocado por ae...
Embora eu tenha gargalhado em sua cara, a expulsado do quarto como se expulsa um cachorro, aquelas palavras me incomodaram profundamente, tanto que no dia seguinte, sem qualquer bagagem, voltei para casa como havia saído, a pé e só.
Os primeiros dias em casa foram estranhos. Tudo me parecia distante, frio e pouco receptivo. Eu evitava a varanda, o sofá, o violão, os livros e tudo o mais que me remetesse... sentimentos. Com o tempo fui me reacostumando, retomando minhas coisas, reconquistando os amigos e deixando o sentimento entrar, mesmo que sorrateiro, pela porta da cozinha...
Ainda estou nesse processo, o Carteiro voltou a me visitar e fui ao encontro do Poeta, quando de lá voltei, abri as janelas, desenterrei os livros de poesia e fiz as pases com violão... E foi assim que em uma tarde, entre um Baudelaire e um Neruda ela surgiu na janela, ou eu a notei na janela, como se nunca houvesse saído de lá... Ela estava ainda mais linda do que me lembrava, mas mais inquieta... Eu a cumprimentei e ela me sorriu, um riso nervoso, mas continuou a olhar a rua e aquilo, em absoluto, me incomodou.
Depois disso, quase todas as tardes nos encontrávamos, ela de um lado da rua, em sua eterna espera, eu de outro, me acostumando com a vida, com as pessoas, com a perda... Ela sempre me tentava sorrir, mesmo quando não estivesse bem. Eu, por outro lado, sempre tentava parecer bem, mesmo não conseguindo sorrir... Assim nos apoiávamos, a meia distância, para que não sobrasse a solidão, nem de um lado, nem de outro...
E são nos dias de lua que quase não consigo controlar a vontade de atravessar a rua e pegá-la no colo, dizer que ela não precisa mais esperar porque eu posso tentar ser tudo o que ela precisa... Mas não, isso não dura muito, pois me dou conta de que ela espera por algo muito específico e eu já não espero mais nada e talvez por isso queira me agarrar a ela, como uma tábua de salvação... Na dúvida fico onde estou, cada dia mais acostumando-me comigo, com meus sonhos, minhas vontades... que na verdade, nunca saíram de mim, estavam apenas sufocados.


A menina do outro lado da rua, com carinho,

Poeta Desconexo.
1 de dezembro de 2010 0 comentários

As lágrimas de dezembro, que escorrem janela abaixo

Dezembro chegou e com ele as chuvas, por isso faz o que se pode chamar de frio, nessas terras escaldantes. É noite e o céu está vermelho, carregado de nuvens pesadas de lágrimas, que é como costumo definir a chuva. Estou na varanda, violão, uma xícara de café, um Baudelaire - que descobri perdido por uma das prateleiras - e esse gato preto, encolhido perto da porta, que a dois dias me faz companhia, sorrateiro.
Meu espírito, calmo e tranquilo como costumava ser... não me inquieta a solidão ou silêncio, pelo contrário, os aprecio infinitamente. Mas muito embora não me incomode, e as janelas continuem abertas a espera de uma brisa, é justamente nessas noites pseudo-frias que sinto falta de um corpo para me esquentar... Não só um corpo, porque isso é muito fácil de arrumar, mas um espírito que acompanhe o meu... De um par de olhos atentos enquanto leio, escrevo, tento tocar... De uma nuca na qual eu pudesse me perder... De um abraço onde eu pudesse me encontrar...
Acabei de receber uma carta daquela moça de não sei onde, que escorracei do quarto e me disse boas verdades... Ela me pede que eu lhe entregue meu coração. Como lhe explico que já não há possibilidade de dispor daquilo que já não é nosso!?
Gostar é sempre um perigo, quando você menos espera você já gosta tanto que quer dar outro nome para isso... como se o gostar não coubesse mais em si... No fim das contas só me resta abrir mais as janelas, na esperança de que sopre uma brisa diferente e eu esqueça esse gostar, antes que ele já não caiba mais em si e se transmude em... amor.


28 de novembro de 2010 0 comentários

Um pouquinho de mim

Acordei tarde, dolorid e ainda beirando a exaustão. Os cabelos revoltos como a muito não os via, mas preferi deixar assim... me olhei no espelho por alguns segundos: diferente. Ver e não se reconhecer, de repente tive saudade de mim, do que eu via no espelho e nunca gostei. Tive saudade da calma, da persistência, da fé nas pessoas, no mundo, saudade dos sonhos e de correr atrás deles como se estivesse bem aqui, bem ali, ao meu alcance...
Disso tudo, quase nada restou... E de repente, fiquei tão triste como se tivesse acabado de perder alguém importante e foi um vazio tão grande que parecia mastigar as minhas entranhas...
Não há mais volta isso de crescer, amadurecer, se aborrecer, magoar, se ferir... Vamos enterrando o melhor de nós impiedosamente, jogando os sonhos em qualquer buraco e os escondendo com mais e mais areia...
Já sei do que tanto sinto falta nessa casa vazia: sou eu. Sou eu que não entro com pressa, com as roupas sujas, a cabeça fervilhando, o coração pulsante e a certeza persistente de estar fazendo a coisa certa... Sou eu que não faço um café no fim da tarde, espalhando livros pela sala, pelo corredor, tropeçando em tudo e me repreendendo interiormente, como se repreendesse uma criança travessa, a respeito daquela bagunça toda...
Sou eu que não encho mais a casa de amigos, arrisco escrever poemas torpes e discursos carregados de sentimento....
Ah o sentimento! Sou eu que não escrevo mais cartas apaixonadas, não persigo mais o amor como se fosse a única coisa que valesse a pena em meio a toda essa falta de... tudo!
E é por isso que ninguém mais vem aqui... nenhuma mais consegue entrar pela janela e tomar de conta de toda a casa, mudando os papéis de lugar, me fazendo confundir os tinteiros... Não há ninguém que me ouça enquanto teço teorias mirabolantes sobre as pessoas, os sentimentos e o destino, tão atenta como se entendesse cada palavra, como se sorvesse cada idéia... Nem ninguém que me convide para dormir, ralhando por estar tarde e eu ainda trabalhando, mas quando me deito, também não me deixa dormir porque precisa ser amada, acalentada, mimada ou repreendida...
Não há mais nada além dessa falta de mim.
23 de novembro de 2010 0 comentários

Um tratado sobre a histeria

É noite e mais uma vez a varanda é meu refúgio. Não porque me incomoda a solidão e o silêncio da casa, porque hoje é exatamente assim que Bloco de textoeu gostaria de estar: sozinha, com a cabeça borbulhando pensamentos.
Será verdade isso de que as pessoas mudam? Que mudam sua forma de pensar, agir? Biologicamente isso é perfeitamente possível com todas aquelas explicações sobre adaptação, seleção natural. Assim, as mutações seriam perfeitamente viáveis, na verdade, necessárias para a perfeita adaptação ao meio.
A verdade é que não entendo nada de biologia, mas compreendo que eu mudei... tão certo que mudei que ontem mesmo me incomodava profundamente a solidão, enquanto hoje agradeço silenciosamente por ela, por não ter que fingir sorrisos ou aturara conversas enfadonhas.
Mas uma mudança muito mais profunda vai se operando em mim, dia após dia, num exercício cotidiano de "adaptação" a doença incurável que se alojou em mim. E ainda há quem acredite que que não há males que vem para o bem.
O primeiro passo disso tudo é a negação: você não quer acreditar/aceitar que está infectado por aquele flagelo da... histeria. Imagine que você esteja há muitos anos tentando andar com as próprias pernas, aprendendo a respirar enquanto todos os seus sentidos entram em colapso, bravamente resistindo ao conflito entre a razão e os sentimentos, que te fazem confundir a realidade posta, com a realidade hipotética.
E se a batalha diária para não se deixar cair no abismo acaba com uma simples constatação: que você já está nele, caindo, afundando e perdido. Este é aquele momento em que os médicos te desenganam e tudo que lhe resta é fechar os olhos e rezar: que eu não sinta dor ao final.
Depois de constatar o inevitável dois podem ser os caminhos: acelerar a queda ou retardá-la. Há quem faça um pouco dos dois...
O que há ao final da doença incurável? A morte. Não há escapatória, senão através de um milagre ou de um avanço sem precedentes da medicina. Então se no final do abismo, tudo que resta é se estatelar em milhões de pedaços, que seja breve. Então você fecha os olhos e acelera a queda, se entrega a intensidade das sensações, que mesmo fugazes e findas lhe satisfazem como nunca nenhuma outra satisfez. E voi-la! Você no fundo do abismo, em centenas de pedaços. No dia seguinte se perguntarão: o que será que ele sentiu quando seu crânio foi comprimido pelo chão áspero!?
Aos menos corajosos restará a tentativa vã de se agarrar a algum galho, pedra, ou qualquer coisa que lhe retarde a queda... - mas isso de coragem temos que discutir numa outra ocasião, porque é bem verdade que coragem, as vezes, se assemelha a burrice e covardia, a prudência...
Sim, mas falava daqueles que se agarram a doses homeopáticas de emplastos que não agem senão nas suas próprias consciências num movimento reverso de... desengano. Estes são os que não se entregam tão facilmente, que insistem em lutar contra o inevitável acreditando cegamente numa possibilidade de "cura". Dois caminhos restam a estas pobres criaturas: morrer tentando, cansar e se permitir, mesmo já bem perto do fim.
Dessa segunda hipótese é que nasce o terceiro passo, para aqueles que não morrem tentando, restará a "revelação", aquele momento muito perto do fim em que tudo lhe parece extremamente claro e simples, onde se percebe que entregar-se não tem nada a ver com escravizar, que compartilhar não significa dar tudo, tampouco apenas receber, mas especialmente uma troca constante onde se dar o que pode e recebe o que puder aguentar. Percebe, ainda, que a lealdade não é sinônimo de fidelidade e que confiança não se constrói de promessas feitas e cumpridas, mas de atos realizados, nunca prometidos, cobrados ou barganhados... Se descobríssemos isso a tempo quase não precisaríamos nos preocupar com a "queda" porque viveríamos num estado suspenso, etéreo, da mais extrema "realidade", com todos aqueles sentimentos te inundando na medida certa e se esvaindo no momento exato.
O problema é que a descoberta quase sempre vem tarde demais e se você ainda não se esborrachou, está bem perto disso e são muito poucas pessoas que conseguem mudar a tempo. Sim, mudar, se adaptar ao abismo e doença incurável, se acostumar com o inevitável, assimilar e compreender a "revelação".
Não sei exatamente se no meu caso tem abismo, mentira! Tem abismo, doença, sensações superdimensionadas. A minha única certeza: o fim, meu ou da doença, o fim. Forçoso as coisas perecerem, elas mudam ou se transformam... o que seja!
A assimilação é um exercício diário, um controle sobrehumano de pensamentos e sentimentos em busca da medida exata, para aprender a conviver com o inevitável, o incurável que não tem nada de IN, a não ser a forma irracional com a qual as vezes insistimos em encará-las.



21 de novembro de 2010 0 comentários

Um dia de cada vez

Ópera. Tenho escolhido ópera pela intensidade, pela maneira lenta, constante e transbordante que ela vai preenchendo o vazio da casa... Todas aquelas vozes, aqueles instrumentos vão me dando a sensação de que não estou só...
Consegui acordar cedo, ir a feira, ler, ler e escrever. Hoje é um daqueles dias em que a balança está lá em cima sem causa aparente. Quando acordei pensei que teria todos os motivos para me afundar na tristeza, mas em vez disso eu levantei... Resolvi me contrariar e não me irritar com o inevitável, porque oras... eu sabia que isso uma hora iria acontecer... Só não deixo esses discursos de "eu quero a sua felicidade" tomem conta de mim, porque isso é hipocrisia demais... Mas sei que consigo lidar com isso. Eu só preciso de um pouco mais de paciência... dessa que eu cultivo bem aqui no quintal...
Venho pensado em motivos para seguir em frente, na verdade mesmo, eu gostaria de motivos que me fizessem esquecer... mas isso é como uma doença incurável, você só pode esperar que ela tome conta do seu corpo e se acostumar com os comichões... Mas nunca é demais rezar por um milagre. Enquanto isso, faço de conta que não há doença alguma, que posso sair por ai correndo bem rápido enquanto a brisa tenta tocar o meu rosto, para no final, quando o ar me faltar eu apenas respirar, bem fundo, bem devagar...
A maioria das óperas são tristes, parei para pensar nisso agora, no quanto está soando triste a voz daquela mulher... Mas eu não quero saber de tristeza hoje, então fujo para a varanda. Ao longe ainda consigo escutá-la, mas agora sooa engraçado... Engraçado mesmo é como tudo pode mudar assim, dependendo do referencial...
Por isso agora vou começar meu próprio jogo do contente: todas as vezes em que a tristeza vier me visitar, com seu ar sombrio e gélido, eu vou fugir para a varanda, olhar para o céu e pensar em... possibilidades. Exatamente, possibilidades, tão vastas, incontáveis e nada palpáveis como todo o céu, as estrelas, as nuvens...
Devo estar parecendo louca, aqui na varanda, falando sozinha, sobre céu e derivados... Mas a loucura é também uma possibilidade, e ela tem me parecido mais viável que a Tristeza...
20 de novembro de 2010 0 comentários

Divagações matutinas

Lembrei de Tomas olhando aquele muro, do outro lado da rua, decidindo se trazia ou não Tereza para sua vida, sopesando os prós e contras de trazer aquela mulher para a sua casa, ter que dormir com ela, senti-la apertar a sua mão possessivamente enquanto dorme... Tomas sequer tinha uma cama... "Olhava para as paredes sujas do pátio e percebia que não sabia se aquilo era histeria ou amor"
Deve ser histeria... imagine essa quase necessidade de ouvir a voz de alguém, de querer estar perto sentindo apenas a sua respiração ou vendo seu sorriso despontar... e esse sentimento de proteção absurdo, esse querer bem...
Sim, mas eu fala de Tomas e Tereza, não de mim...
18 de novembro de 2010 0 comentários

Algumas palavras

Como explicar essa solidão incômoda que me acompanha passo!? E essa inquietude que dia sim, dia não resolve se abancar no meu sofá exigindo atenção, resmungando pensamentos desnecessários?
Por mais que eu tente não consigo me acostumar com os móveis, parece que tudo está fora do lugar ou parece que tudo foi comprado ontem ou ainda, parece tudo velho e obsoleto... É tudo isso em um segundo apenas...
Vai ver esse corpo nem é meu, nem nada disso que me rodeia. Vai ver eu acabei de acordar e ainda estou meio atordoada, tentando reconhecer tudo, tentando lembrar onde estou, mas não consigo e me resta uma enorme dor de cabeça que vou tratando com cochilos matinais. E enquanto eu durmo sonho com um mundo diferente desse, onde me sinto confortável comigo mesma e o violão não desafina...
Então solidão é isso... acostumar-se consigo mesmo e com os ecos dos seus próprios passos na casa vazia!? Gostaria que alguém viesse me visitar, que conversasse comigo a tarde inteira sobre essas colinas, sobre o sabor do café, sobre a casa que precisa de reforma, sobre essa angústia... Mas não adianta, o tempo passa, o pó assenta e a porta continua fechada, muda e fria.
1 de novembro de 2010 1 comentários

Incômodo

Voltar para casa e essa sensação de que nada mais ali te pertence, é estranho... Não é mais sete da manhã por aqui... agora é sempre cinco da manhã e todas essas cores entre a noite e o dia, outra coisa com a qual preciso me acostumar...

Não sei, mas sinto como se tivesse acabado de voltar do exílio, ou de um coma profundo, ou de uma longa e tenebrosa viagem e embora tudo aqui me pareça familiar, quase nada me tranqüiliza... Nem a música, nem os livros, nem o sofá e os cochilos de começo de manhã.

E para completar esse retrato que fica me fitando de dentro da gaveta, como se de fato pudesse me ver e me esfregar a verdade na cara... A gaveta nos separa, minha querida, nos separa, nos protege...

Novas canções alternam com os antigos sons. Estou pensando em trocar o sofá por uma rede no quintal e também esses livros, são muitos e estão empoeirados, precisam urgentemente achar seus donos, aqueles que vão lhe devotar por toda eternidade... Eu já aprendi que não preciso de tanta coisa assim para sobreviver, só o que consigo carregar... Me acostumei até com o silencio, mas não consigo lidar é com essa solidão...

E eu que pensei que havia superado, me vejo superada...

25 de outubro de 2010 0 comentários

Recomeço



Hoje lembrei daquele momento na sala da casa dela onde eu ressaltei até com um pouco de desdém o mundo vazio em que ela vivia... Naquele momento se partiu o ultimo fio de consideração que havia entre nós onde ela me mostrou a grande grosseria que eu havia dito e como um tapa na cara disse que achava que eu era mais legal, bom talvez eu não fosse...

O que ela não sabe é que eu li no seu olhar algo como “eu sei exatamente onde estou metida”... Sim, eu sempre soube exatamente onde estava metida...

Engraçado que comecei esse pseudo-desabafo falando dela, mas acontece que tudo isso só me faz lembrar dela, de como de algum jeito, ela não queria que eu mergulhasse nisso, queria que minha inocência, meus sonhos e meu respeito pelas pessoas continuasse intactos e veja só no que deu... tudo jogado ao alto, espalhado pelos cantos do mundo... perdido no fundo de gavetas, empoeirados em estantes velhas...

E que contraditório, quanto mais eu me afastava dela, mais eu mergulhava nesse mundo, sentindo um quase prazer em me machucar, ou fazer doer... Sim, mas porque falar dela, depois de tanto tempo, tantos acontecimentos?

Porque para começar, devo confessar sem medo, sem culpa e até sem ressentimento algum que ela com toda a certeza foi a mulher que mais amei até hoje. E para recomeçar, devo jogar fora toda essa minha mágoa, porque não era para dar certo mesmo, porque tínhamos mundos e perspectivas diferentes e eu era uma completa tola.

Estou gargalhando de minha tolice, mas não com o desprezo de antes, com aversão e vergonha do que fui... Porque, meus caros, eu podia ser muito tola, mas sem falsa modéstia, eu era um grande ser humano... Digo era, porque muita coisa se perdeu nessa excursão, inevitavelmente muitos sonhos e ideais foram deixados de lados e alguns, tristemente, ficaram pelo caminho... Alguns valores foram soterrados, sentimentos estrangulados... E apesar de nunca ter sido muito de lamentações, essa é uma coisa pela qual se vale a pena lamentar... Sentimentos, grande e nobres sentimentos perdidos ante a ignorância, o desprezo e a indiferença...

Mas alguma coisa ainda há que se aproveitar, pois como diz o ditado, o que não mata engorda e ando meio seca de bons sentimentos, pensamentos positivos... Preciso me incomodar com alguma coisa... Preciso urgentemente que algo me toque, me desperte a ponto de querer tanto que cruze um rio inteiro por isso.

Preciso sentir minhas veias inflarem, minha pele incendiar, meu coração fazer pulsar as paredes do meu corpo... Cansei dessas sensações descartáveis de cinco segundos, que se compra com uma bebida quente, conversa fiada e sedução barata... Não digo que nunca mais sairei de casa querendo conhecer alguém que me dará prazer momentâneo e apenas isso, sem que precise que nos vejamos no dia seguinte para começarmos a teia de mentiras, o jogo de interesse e de perde e ganha que, às vezes, um relacionamento se torna... Talvez eu saia, mas uma overdose disso, nunca mais...

E o que eu levo de bom de tudo isso: seja transparente, não seja frágil. Seja sincero, não seja sacana. E não adianta alimentar essa imensa roda, se lá na outra extremidade estará você esperando para sofrer, ou sofrendo de solidão... Porque o sofrimento é inevitável, e como a morte temos que aprender a lidar com isso, para que não tome proporções maiores que as reais... Sofre-se por amor, mas sofre-se ainda mais amargamente pela falta dele

Mas como eu dizia, sinto que estou mais forte sem as tolices de criança, sem os extremos da adolescência e cortejando o equilíbrio assim, entre a razão e a insanidade, sem pressa em amadurecer, sem medo de crescer, apenas aceitando o que tiver de ser, onde quer que meus passos me levem...

Não acho que será fácil e Deus queira que não seja, senão, onde estará a graça em vencer os desafios? Mas assim, sem mágoas, ressentimentos, sem indiferença, sem essa sádica vontade de fazer sofrer, o caminho parece mais limpo, a bagagem mais leve e o dia bonito para recomeçar... Sem nuvens, azul... cor de esperança.

14 de setembro de 2010 0 comentários

MARCELA : Ato 1




Enquanto fumava solitária, no apartamento escuro, com as janelas fechadas, o som desligado, ela lembrou, lembrou quando tudo começou. Do momento exato em que, como naqueles filmes fantásticos, o espírito deixa o corpo com uma expressão de pesar que diz: deixo-te aí, sozinha, vire-se com esse peso morto que é você.

E tudo começou, como diria Caio Fernando com uma epifania, exatamente como ele descreve em “pequenas epifanias”: dois ou três almoços, uns silêncios. Quando ela disse não diante de uma possibilidade, que mesmo sendo apenas uma possibilidade já apunhalava suas costelas, pesava sua cabeça e confundia seu humor.

Marcela havia cometido mais um erro, desses que se comete e depois se arrepende se achando a criatura mais burra e mais ridícula de todos os tempos. Mas então ela decidiu “não sentir”: um exercício suicida de colocar tudo para dentro, bem no fundo, tão escondido que nem ela mesma, quando quisesse procurar, tivesse certeza de onde exatamente estava e não achasse, não achasse nada que pudesse sentir.

E assim Marcela foi para rua e lá ela começou a olhar as pessoas como se não as visse, assim como se passa os olhos num livro que nunca vai ler. Ela deixou para trás a mania de querer ler as pessoas, como se elas sempre tivessem mais do que mostravam. Ela parou de querer escavar o que ninguém via, porque se ninguém via, era porque não existia mesmo.

E para isso Marcela nunca mais olhou nos olhos de ninguém. Falava com alguém sempre olhando para um ponto qualquer entre as sobrancelhas ou um ponto inexistente atrás do seu interlocutor e assim se protegia, porque os olhos, disso ela lembrava muito bem, os olhos sempre contavam segredos de forma tão escancarada mesmo para quem não quisesse sabê-los.

Depois Marcela parou de falar tudo que lhe vinha a cabeça, de seus sonhos, de suas fantasias muito bem construídas e coloridas, de si mesma. Ela agora vivia introspectiva pensando em teoria complexas sobre o comportamento humano, sobre os acontecimentos, sobre os livros que lia e era também sobre essas coisas que falava, quando falava, e por isso passou a ser incompreendida. Incompreendida, porque as pessoas gostam da sensação de dessecar suas vidas e colocar a mostra parte a parte, como numa aula de anatomia, para compararem umas com as outras e perceberem que está mais podre que quem.

Marcela também tinha que abandonar aquela sensação de perda e de vazio que de tão pesada lhe incomodava os ombros e não sendo pouco lhe deixava um gosto amargo na boca de sangue, café sem açúcar, cigarro barato e tudo isso junto. Mas essa era parte mais difícil, porque mesmo depois que ela guardasse seus sentimentos bem fundo naquela gaveta - que depois ela esquecia -, mesmo quando se negasse a ouvir os segredos que os olhos contam, quando guardava seus pensamentos para si e falava o que não pensava, aquele gosto ainda continuava lá, aquele gosto amargo de solidão, como se não houvesse mais ninguém no mundo.

28 de agosto de 2010 2 comentários

MARCELA



Um blues qualquer tocava enquanto ela fumava um cigarro observando a rua lá embaixo. Do lado do seu prédio havia um poste de luz, diferente de todos os outros postes da rua, àquela luz era laranja, e todo mundo parecia tão suspeito quando iluminado por aquela luz. Ela morava num apartamento pequeno que vivia quase sempre escuro, se aproveitando daquela luz, ou da luz do sol que entrava sem pedir licença pelas três janelas.

O telefone tocou. Ela não abaixou o som e atendeu displicentemente, sem olhar no visor.

- Puta que pariu, Marcela! Suas mulheres não largam do meu pé. – disse uma voz exasperada do outro lado da linha.

- Quem mandou ter pena delas!? – perguntou a morena enquanto procurava uma cerveja na geladeira.

- Cara, você é muito ordinária, o que essas mulheres vêem em você!?

- É o sexo, minha querida, elas adoram o sexo. – ela respondeu com uma cara safada lembrando a noite passada, sem lembrar o rosto da mulher.

- Vadia. Porra, tive que sair do Lux escondida, porque tinha pelo menos umas três mulheres que queriam seu número, endereço, pontuação e não me deixavam nem beber de tantas perguntas que faziam.

- Mari, faz o seguinte: compra umas cervejas e vem beber aqui.

- Você não vai sair hoje? – perguntou surpresa.

- Nem um pouco a fim de ouvir ladainha de mulher ou fazer esforço para levá-las para a cama.

- E vai ficar sem sexo hoje!? – perguntou Mariana em tom irônico.

- Talvez. Quer dar pra mim hoje, Marizinha? – provocou Marcela.

- Vagabunda! Deus me livre dessa maldição.

- Vem logo, cervejas e cigarros. – falou Marcela desligando o telefone e atirando aparelho no sofá.

Bebeu mais um gole de sua cerveja e começou a imaginar a cena: Mari se esgueirando pelos cantos enquanto três loucas a caçavam por todo o bar. Mas era como ela havia dito: quem mandou ter pena delas!? Marcela era bem “prática”, como gostava dizer, só queria uma coisa de todas as mulheres que conhecia: sexo. Apenas sexo bom e sem compromisso algum. Se pudesse dispensar nome, dia seguinte e toda aquela ladainha de quero você só para mim, estava ótimo! Mas não, se cedia o nome tinha que sair fugida madrugada a fora para nem pensar em dia seguinte, mas quando se distraia e acordava com beijinho na nuca sabia que estava enrolada, levantava rápido, inventava uma desculpa qualquer, inventada que não tinha celular e tchau e benção! E quando encontrava a mulher por mais de uma vez e elas por acaso queriam lhe cobrar algo ela era curta e grossa:

- Foi só sexo, querida.

Já ganhou alguns tapas e meia dúzia de inimigas mortais, por isso ultimamente estava sendo mais cuidadosa, antes de começar a se desfazer das roupas, antes de aprofundar os beijos, antes de sentir sua pele rasgando pelas unhas vorazes, ela olhava bem nos olhos da mulher e dizia:

- Minha querida, é só sexo, ok!?

Dava certo a maioria das vezes, e se não desse, tão melhor para as duas, poupava trabalho, lágrimas e desassossego. Mas que mania os seres humanos tinham de se apegar uns aos outros. Era nisso que ainda pensava quando Mari chegou abrindo a porta, jogando os cigarros na mesinha de centro e indo direto para a cozinha colocar as cervejas na geladeira.

- Mari, porque diabos os seres humanos se apegam tanto uns aos outros?

- Não dá pra viver sozinha no mundo, Marcela. Precisamos uns dos outros. – dizia Mari enquanto voltava da cozinha, já com uma cerveja na mão.

- Sim, necessidades são satisfeitas com interesses. Tipo quando você está com fome, vai lá e come e pronto, acabou-se. – ela falou distraída com mais um suspeito que subia a rua.

- Pelo menos até você ter fome de novo. Mas pessoas não são como comida, você não pode comprar, guardar na geladeira ou guardar para comer amanhã.

- Uma pena, seria tudo tão mais simples. – falou enquanto dava um ultimo trago no seu cigarro, que aquela hora já não era mais nada que não um filtro já quase apagado.

- Onde você esconde seus sentimentos!? Eu não posso acreditar que você não tenha nem um pingo de remorso, você não era assim, acreditava em amor, vida a dois e essas coisas, como foi isso, acordou um dia e decidiu ser a mulher mais vagabunda que conseguia?

- Por muito tempo acreditei mesmo, não vou mentir, mas aquele trecho do conto do Caio Fernando não saiu da minha cabeça, eu já te falei dele, Sargento Garcia, ele era bem xucro e a filosofia dele era bem simples: pisa nos outros antes que te pisem. Minha querida, as pessoas pisaram muito em mim antes que eu decidisse pisar nelas.

- Então admite que pisa nas pessoas? – indagou uma Mari curiosa, acendendo um cigarro.

- Sim, não sou santa, sou miseravelmente sincera: eu quero das pessoas apenas o que eu quero, não o que elas estão dispostas a me dar. – ela falou com uma voz meio amargurada, jogando o filtro do cigarro longe.

Mariana tinha mais pena que raiva de Marcela. Elas se conheciam há muitos anos e aquela Marcela que agora se jogava no sofá ao seu lado, acendendo mais um cigarro e sem qualquer esperança ou expectativa em relação a nada nem de longe lembrava a amiga que conhecera na faculdade. O sinal mais claro de mudança se estampava no olhar. Marcela olhava para tudo e todos com imenso desdém, como se nada lhe fizesse a menor diferença. Mariana não se lembrava de um dia em específico que olhou em seus olhos e não enxergou outra coisa senão indiferença, mas aos poucos Marcela foi mudando. Não falava mais de sonhos, tratava as pessoas como os objetos de sua sala, aos quais não tinha qualquer apego e por isso se desfazia delas sem qualquer culpa. Perdeu alguns amigos pelo caminho, muitos não souberam se acostumar com essa nova personalidade, seu jeito ácido e “prático” de simplesmente não se apegar a nada nem a ninguém.

Marcela acreditava no amor e esperava encontrar alguém com quem pudesse dividir o resto de sua vida, acreditava. Hoje ela chegava a ter desprezo por quem pensassem assim e quando indagada a respeito de suas antigas crenças dizia apenas que a vida lhe mostrara uma nova perspectiva, uma deliciosa e frágil perspectiva baseada em sexo e relações superficiais.

- Eu não entendo como você mudou tanto. – falou Mariana mais para si mesma do que para a outra.

- Eu não mudei, o mundo me mudou. Todos esses amores que vocês tanto almejam, esses pelos quais vocês suspiram pelos cantos e pedem silenciosamente durante a madrugada, todos eles foram me sugando, me ferindo, me socando tanto, que um dia desses enquanto eu estava sangrando decidi que não queria mais apanhar, o que há de errado nisso!?

- Você fala como se amar fosse a pior maldição do mundo.

- Não, a pior com toda certeza é amar uma mulher!

- Não é possível que você não sinta mais nada.

- Sinto, claro que sinto, sinto tesão, tesão é um sentimento que dá e passa. Se quer saber se sinto remorso, culpa ou qualquer coisa nesse sentido, a resposta é não.

- Eu não consigo, não consigo fazer sexo sem me apegar, é tanta intimidade, um pouco de sincronia, sintonia... não consigo. – falou Mariana quase em agonia.

- Você pensa demais. Eu parei de pensar em muitas coisas, eu não penso no amanhã, por exemplo, detesto fazer planos e não crio mais expectativas em relação a nada. Descobri que sexo sem expectativas e dia seguinte é o melhor que pode haver. Você transa como se fosse a ultima foda de toda a sua vida, mas também como se fosse a primeira, tanto faz, você só transa, não há nada de complicado nisso.

- Você é feliz?

- Não busco felicidade, busco satisfação, e sim, estou satisfeita. – respondeu Marcela enquanto se levantava do sofá e ia até a cozinha buscar mais uma cerveja.

Felicidade, amor, sonhos, Marcela passou a odiar tanto essas palavras que tinha asco apenas por pensar nelas. Perdera a esperança no mundo, nas pessoas, paciência. Canalha, prepotente, arrogante, podiam chamar do que quisessem, estava apenas se protegendo, é a lei da sobrevivência: quem não mata, morre. Ela cansou de morrer todos os dias aos pouquinhos.

Marcela não voltou da cozinha, no meio do caminho preferiu a cama, dormir era sempre melhor que pensar.

20 de agosto de 2010 0 comentários

CAIO FERNANDO ABREU


Dois ou três almoços, uns silêncios.
Fragmentos disso que chamamos de "minha vida".

Caio Fernando Abreu



Há alguns dias, Deus — ou isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus —, enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor. Ou disso que chamamos, também com descuido e alguma pressa, de amor. E você sabe a que me refiro.

Antes que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer ou não querer — eu já estava lá dentro. E estar dentro daquilo era bom. Não me entenda mal — não aconteceu qualquer intimidade dessas que você certamente imagina. Na verdade, não aconteceu quase nada. Dois ou três almoços, uns silêncios. Fragmentos disso que chamamos, com aquele mesmo descuido, de "minha vida". Outros fragmentos, daquela "outra vida". De repente cruzadas ali, por puro mistério, sobre as toalhas brancas e os copos de vinho ou água, entre casquinhas de pão e cinzeiros cheios que os garçons rapidamente esvaziavam para que nos sentíssemos limpos. E nos sentíamos.

Por trás do que acontecia, eu redescobria magias sem susto algum. E de repente me sentia protegido, você sabe como: a vida toda, esses pedacinhos desconexos, se armavam de outro jeito, fazendo sentido. Nada de mal me aconteceria, tinha certeza, enquanto estivesse dentro do campo magnético daquela outra pessoa. Os olhos da outra pessoa me olhavam e me reconheciam como outra pessoa, e suavemente faziam perguntas, investigavam terrenos: ah você não come açúcar, ah você não bebe uísque, ah você é do signo de Libra. Traçando esboços, os dois. Tateando traços difusos, vagas promessas.

Nunca mais sair do centro daquele espaço para as duras ruas anônimas. Nunca mais sair daquele colo quente que é ter uma face para outra pessoa que também tem uma face para você, no meio da tralha desimportante e sem rosto de cada dia atravancando o coração. Mas no quarto, quinto dia, um trecho obsessivo do conto de Clarice Lispector "Tentação" na cabeça estonteada de encanto: "Mas ambos estavam comprometidos. Ele, com sua natureza aprisionada. Ela, com sua infância impossível". Cito de memória, não sei se correto. Fala no encontro de uma menina ruiva, sentada num degrau às três da tarde, com um cão basset também ruivo, que passa acorrentado. Ele pára. Os dois se olham. Cintilam, prometidos. A dona o puxa. Ele se vai. E nada acontece.

De mais a mais, eu não queria. Seria preciso forjar climas, insinuar convites, servir vinhos, acender velas, fazer caras. Para talvez ouvir não. A não ser que soprasse tanto vento que velejasse por si. Não velejou. Além disso, sem perceber, eu estava dentro da aprendizagem solitária do não-pedir. Só compreendi dias depois, quando um amigo me falou — descuidado, também — em pequenas epifanias. Miudinhas, quase pífias revelações de Deus feito jóias encravadas no dia-a-dia.

Era isso - aquela outra vida, inesperadamente misturada à minha, olhando a minha opaca vida com os mesmos olhos atentos com que eu a olhava: uma pequena epifania. Em seguida vieram o tempo, a distância, a poeira soprando. Mas eu trouxe de lá a memória de qualquer coisa macia que tem me alimentado nestes dias seguintes de ausência e fome. Sobretudo à noite, aos domingos. Recuperei um jeito de fumar olhando para trás das janelas, vendo o que ninguém veria.

Atrás das janelas, retomo esse momento de mel e sangue que Deus colocou tão rápido, e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto tempo incapazes de ver: uma possibilidade de amor. Curvo a cabeça, agradecido. E se estendo a mão, no meio da poeira de dentro de mim, posso tocar também em outra coisa. Essa pequena epifania. Com corpo e face. Que reponho devagar, traço a traço, quando estou só e tenho medo. Sorrio, então. E quase paro de sentir fome.

(Publicado no jornal "O Estado de S. Paulo", 22/04/1986)

1 de agosto de 2010 2 comentários

Boêmia

Texto antigo, de um tempo bom...

“Boêmia, aqui me tens de regresso”. Hoje acordei pensando nisso, a propósito, acordei bem tarde, dei um beijo demorado na bochecha da minha mãe enquanto ela reclamava. Depois fui pra rua, minha mãe ainda reclamava: por eu não ajudar, por eu não trabalhar... E eu com cara mais limpa, enquanto segurava a porta disse: O que é isso mamãe? Já lhe disse que meu trabalho é intelectual, e que por isso não posso desviar minha atenção com nada mais!

Enquanto vou até o bar da esquina, onde meus amigos já me esperam paras as costumeiras partidas de sinuca, fico lembrando da minha cara de pau, hoje com mamãe, ontem com aquela menina... Sim, aquela que não me lembro o nome, amiga da menina que minha amiga ficou. Aquela mesma que ficou sozinha enquanto minha amiga se encarregou da amiga e eu pensei cá comigo: Mulher sozinha não! Puxei um assunto bem nada com nada, daqueles fim de festa e a minha amiga, como se tivéssemos combinado veio ficar se beijando na nossa frente, e a gente lá, olhando e eu brilhantemente falei:

- É feio ficar olhando!

E ela como se adivinhasse meus pensamentos disse:

- Fazer o que?

- Fazer igual! – disse já partindo para cima!

Na mosca! Mas esse é um jogo perdido, aqueles mesmo só para cumprir tabela. Mas fazer o que!? Fui par, não gosto das bolas pares, prefiro ímpar! Perdemos, pagamos: a próxima ficha, a próxima cerveja e não me pergunte de onde saiu o dinheiro. Há meia hora atrás ninguém tinha dinheiro, mas já estamos na quarta cerveja, na quinta ficha, arrumaram até algo para comer.

E o pessoal está tirando um som no violão e nós cantamos: as músicas, as histórias, as mulheres. Ninguém tem precisão de ir pra casa, na verdade vamos improvisar uma festinha na casa da Carol: dois galões de vinho, um litro de vodcka, cigarros, livros de poesia, violão. Ninguém está preocupado com conta pra pagar, ninguém está preocupado com a ressaca, com a mãe que vai ralhar, com ex-namorada, com salário atrasado... Queremos nos divertir! Amanhã é outro dia...

11 de julho de 2010 2 comentários

Capítulo 2

No dia seguinte subi a ladeira quase correndo. Estava decidida a entrar no café, pedir alguma coisa nem que fosse para levar, mas assim que avistei você, no meio de toda aquela algazarra do café percebi que aquela manhã seus olhos estavam mais tristes do que de costume. Você se movia rápido e anotava os pedidos com uma impaciência que tive pena da caneta e do papel. Dessa vez não reduzi o passo, tampouco o apressei, em vez disso parei. A sua tristeza me atraía de tal forma que eu não conseguia dar nem mais um passo. Eu nem sei por quanto tempo fiquei ali parada querendo absorver a tua tristeza, porque quando me dei conta seus olhos se encontraram com os meus me assustando de tal forma que dei dois passos para trás. Seu olhar era de puro desdém, não, era de indiferença, na verdade, nem sei, mas eu acho que qualquer coisa que estivesse sentindo você descarregou naquele olhar. Então, em vez de me sentir triste, me senti útil, afinal comigo você não teve que fingir sorriso, paciência ou complacência, você simplesmente me olhou com todo o sentimento que havia em você.Naquele dia cheguei atrasa e nem tomei café.

3 de julho de 2010 0 comentários

Um diário para que você leia




Capítulo 1

Depois que eu descobri onde ela trabalha mudei o caminho até o serviço. Agora passo por essa ladeira todos dias para lá no topo dar de cara com os seus olhos sempre atentos aos pedidos, mas com um brilho que não me engana, é tristeza. Subir uma ladeira e caminhar mais três quarteirões do que estava acostumada só para fitar seus olhos por dez segundos, às vezes 20, quando reduzo o passo, é meu mais novo passatempo.

Hoje você estava de cabelos soltos e isso me fez lembrar da primeira vez que a vi, caminhando apressada, cabelos ao vento. Você passou por mim e não me percebeu, e nem poderia, eu era mais uma pessoa a decorar a rua, a se por no seu caminho. Mas o cheiro do seu cabelo fez com que eu te percebesse, com que você ganhasse cor no meio daquela pintura da rotina, pessoas indo e vindo. Ah! O cheiro do teu cabelo deu uma cor tão forte aquele dia.

Teus cabelos soltos me fez lembrar aquele cheiro, não que eu me lembre dele, e isso é uma das coisas que muito lamento, mas lembro da impressão que ele me causou. E por essa impressão novamente tenho vontade de entrar lá, pedir um café e sentir esse cheiro toda vez que você for de lá para cá, com um pedido ou outro. Mas então eu me lembro que com a mudança de rota se eu não correr chego atrasada.

1 de fevereiro de 2010 3 comentários

Um outro amor

Tem gente que passa a vida toda procurando alguém com que vá viver os melhores dias de sua vida. Os melhores momentos, os melhores sorrisos, uma compreensão mútua num olhar, um silêncio compartilhado, um abraço que preencha todos os espaços entre um coração e outro.
E nessa busca há quem não olhe para o lado. Há quem não perceba a magnitude de momentos simples como um banho de chuva, como poses malucas para uma infinidade de fotos loucas, como músicas toscas a beira mar. Tem gente que não nota que a pessoa do lado talvez queira conversar e tenha boas coisas a falar. Há quem não perceba, num olhar, uma infinidade de promessas, companheirismo, cumplicidade. Há quem não note, que em um abraço é possível ouvir o coração do outro e compartilhar, sua felicidade ou sua dor.
Quem espera por uma só pessoa, talvez não valorize todas as outras que estão ao seu lado. E assim, talvez deixe passar o amor mais sincero, verdadeiro e único: o amor de um amigo.
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Qualquer coisa

Post antigo... q não postei não sei porque... mas é tb um pouco do q sinto ultimamente...


Preciso escrever. Mas não há nenhum tempo de qualidade, nem uma cadeira confortável, ou uma mente leve, entre todos esses papeis de letras fria e irreais. Entre essa negação de poesia, entre essa correria. Há horas que nem há prazer, pois pensar na mesquinhez do ser humano me tira a criatividade, me sufoca a imaginação.
Os movimentos são os mesmo, as preocupações também, nossas conversas a mesa do bar, que saudade dessas conversas! Saudade de ouvir meus amigos contarem os problemas e ter uma palavra de consolo para eles, mesmo que não fosse nenhuma.
Minhas costas doem. Meu tempo está curtíssimo. O que anda acontecendo no mundo, afinal? Meio por tabela eu ouço a música que agora toca nas rádios. Meio que por acaso tenho notícias dos amigos. Meio que por acaso vou de uma estrofe a outra, mas sem nunca completar o poema...
 
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